Luigi.Schinzari 08/01/2021
Sobre Ferragus, de Balzac:
Não há meio mais vívido de se conhecer Paris, fora visitá-la propriamente, do que pelas obras de Honoré de Balzac (1799-1851). O autor, um dos modelos para o romance moderno e exemplo do Realismo, modelou propositalmente cada recanto da Cidade-Luz ao longo de sua Comédia Humana, compilado de quase toda sua extensa carreira como prosador, definindo traços da vida aristocrática da Paris pós-revolução, de seu campesinato, do ambiente militar abalado, seja positiva ou negativamente, pela passagem de Napoleão, de suas famílias burguesas entre outras personalidades essenciais para compor o retrato de sua Paris, com personagens, vira-e-mexe, se entrecruzando em várias histórias, demonstrando o caráter abrangente do autor em compor realmente seu painel da capital da França. Em Ferragus, o chefe dos Devoradores (no original, Ferragus, chef des Dévorants), de 1834, o então mais realista Balzac aproxima-se mais do Romantismo e traça como nunca esse painel delicioso de se acompanhar que é sua composição de uma Paris detalhada e paradoxal, agregada a tramas de conspiração e paixões, tonalmente, mais exacerbadas.
Focada, desta vez, em um ambiente mais nobre, Balzac nos apresenta, em 1820, o jovem barão Auguste de Maulincour, oficial de cavalaria atraído por Clémence Desmarets, casada com Jules Desmarets. Guardando sua paixão dentro de si, Maulincour age como um voyeur e anda espreitando os passos da Sra. Desmarets, até que descobre uma possível traição por parte dela junto a um homem idoso (e, de acordo com Balzac, parecido com uma mistura entre Voltaire e Dom Quixote) visitado por Clémence em suas escapadas. Logo Auguste provoca Clémence sobre tal situação e, consequentemente, situações adversas começam a rodeá-lo: acidentes com sua carruagem, pedras caindo de construções e quase esmagando-o etc., fazendo com que a curiosidade de Auguste se transforme em atenção e suspeita entorno daquele homem suspeito que logo descobrimos ser chamado de Ferragus, aparentemente o líder de uma sociedade secreta chamada Os Treze, envolto em mais mistérios do que esclarecimentos.
Mesmo com uma trama de tons mais sombrios e fúnebres, é em Ferragus que Balzac nos mostra sua paixão e conhecimento de Paris de uma forma ímpar. São muitos os momentos de pura apreciação dos cantos da capital francesa, com o autor pincelando suas avenidas agitadas, seu povo alvoroçado envolto a tantos acontecimentos que fogem às suas próprias percepções, por vezes; o contraste entre áreas nobres e zonas pobres que dividem uma mesma rua espelham os salões e as casas de Balzac, frequentados por gente frívola, honesta, apaixonada ou indiferente -- seus núcleos perpassam, diferentes como são entre si (assim como na vida também somos entre nossos semelhantes), por camadas entre a sociedade: ora Auguste está em um salão como um qualquer de peito erguido e reconhecido por todos, ora está se escondendo pela Rua Traversière-Saint-Honoré, lugar de má reputação, em sua perseguição inconsequente a uma mulher que nada deve. E são muitos os momentos e personagens expostas ao contraste proposto por Balzac em sua Paris viva, ainda mais viva, aliás, por sua proposital escolha por tons mais romanescos ao realismo habitual e sacramentado em sua vasta obra.
As emoções, elemento tão bem trabalhado pelo autor em outros romances como O Pai Goriot, adquire um tom mais escandaloso em Ferragus, com reações mais dramáticas do que o habitual em comparação às sutilezas passadas por diálogos ou descrições em sua Comédia Humana. Tal característica, ao contrário do que podemos pensar (e, consequentemente, cair em erro) é opcional, ficando nítido por sua dedicatória a Hector Berlioz, compositor romântico e amigo pessoal de Balzac (ambos, aliás, pretendiam transformar Ferragus em um libreto de ópera, projeto abortado por conta da vindoura Les Troyens, obra-prima de Berlioz inspirada em Virgílio); e esse tom romântico não para por aí: Ferragus faz parte de uma trilogia de Balzac sobre essa sociedade secreta, Os Treze, e, nas obras subsequentes, cada uma é dedicada a um romântico diferente (Em A Duquesa de Langeais, Liszt; em A Menina dos Olhos de Ouro, Delacroix). Não é, portanto, um acaso Ferragus ter o tom que tem, é necessário para sua narrativa e para os temas que Balzac deseja abordar adotar essa abordagem romântica -- e como a trabalha bem!
É inevitável ao leitor de Ferragus, inebriado em traição, perseguição, conspiração e morte, ficar instigado pela narrativa polida e detalhista de Balzac. A essência balzaquiana encontra-se nesta curta obra, com personagens díspares em seu caráter mas, inevitavelmente, cativantes, como no caso de Auguste, ou retratos de heróis mais tradicionais em sua moral mas defeituosas em suas atitudes, como no caso do marido supostamente traído, ou ainda na dúvida pairando sobre a relação existente entre a esposa deste e o misterioso e amedrontador Ferragus, ser aparentemente onisciente por conta de seus colaboradores secretos. Em sua escrita, Balzac deixa espaço para cada personagem e ainda divide suas trajetórias com sua Paris do momento, a da restauração da monarquia e que mal ouve os sons do presságio dos acontecimentos explosivos de 1830 e 1848. Portanto, cabe saber apreciar devidamente a escrita conhecidamente fluida e imersiva de Balzac sempre com olhos atentos para as minúcias que enriquecem este que é um de seus maiores expoentes -- Ferragus, obra trágica em seu desenrolar mas, como todo grande livro deve ser, que denota os sentimentos nobres tanto em sua narrativa refinada quanto no despertar íntimo do próprio leitor que a finalizar.