skuser02844 14/05/2024
Drogas, felicidade e o selvagem não é herói
Meu primeiro interesse real em Huxley não teve nada a ver com a sua obra. Sempre soube, pela sua biografia e fama, que ele seria uma etapa importante da literatura que eu inevitavelmente passaria, e gostaria. Mas o que me interessava em AH era o seu envolvimento com psicodélicos, sobretudo dos anos 40 a 60.
Huxley, como vários da época, parecia estar buscando nessas drogas algo como uma forma de religiosidade natural, bem coisa de hippie mesmo, mesmo que com um toque de ficção científica: uma droga para alcançar os deuses; como era para os astecas o teonanáctl (ou “carne dos deuses”), um pequeno cogumelo marrom recheado de psilocibina.
Com isso, é claro que o que mais chama a minha atenção durante a leitura é o fato de ele estruturar toda uma sociedade ao redor de uma droga, também um corpo (sôma, em grego, como vemos em “psicossomático”), mais aceito por uns do que por outros.
É claro que AH estava muito antenado no que acontecia ao seu redor lá pelos anos 20/30, por tudo que a gente vê de atual na sua narrativa. Tipo, uma sociedade condicionada desde a infância a girar a roda da dopamina em busca de gratificação instantânea, oiê geração do milênio, esta é você? Mas acho que o que tem de mais brutal nessa narrativa não é só o que ela critica e comenta sobre o mundo moderno (e pós-moderno, aparentemente).
A segunda metade do livro toda, na minha leitura, é uma discussão insolúvel (bem como a vemos representada no capítulo 18, na discussão entre o Selvagem e o Controlador) sobre a felicidade, ou felicidades, no plural. Felicidade pela compensação instantânea, do condicionamento; felicidade sintética, pela droga; felicidade de verdade, isso existe?; felicidade idealizada; felicidade inatingível; mas não só, também a felicidade por se encaixar, não se encaixar, a felicidade pela infelicidade, etc.
A felicidade é uma coisa do corpo ou da alma? Esta é uma das questões que o livro deixa no ar. Existe uma droga que nós possamos tomar para ficar feliz? Mas aí quem é feliz é o corpo ou a droga? Aí vem o soma, etimologicamente corpo e fantasticamente droga. Perfeito. E fica melhor: “Cristianismo sem lágrimas: isso é o soma”, ele é, ainda, a blasfêmia da religião engarrafada. Vai aí meio grama da carne dos deuses comprimida?
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Não sei o quanto essa leitura está no livro ou em mim, mas também queria registrar que John, o Selvagem, não é herói nessa narrativa. Estar contra a distopia proposta por ela não o coloca nessa posição, pelo contrário, ele é vilão de si mesmo (e de todos ao seu redor) ao estar, bem como outros personagens, muito consciente de si, o que o torna completamente inconsciente do meio, o que o faz ser constantemente distinguido dos outros, o que o deixa ainda mais consciente de si. Ele nega o corpo três vezes: o soma, Lenina, e o seu próprio, e é isso que o coloca em parafuso neste retrato tão angustiante da era da ansiedade.