As duas últimas décadas do século XX viram ascensão da ideia de cultura a um duplo primeiro plano: o das políticas públicas e o do mercado, neste caso de um modo ainda mais intenso que antes.
O papel de cimento social antes exercido pela ideologia e pela religião, corroídas em particular na chamada civilização ocidental, embora não neutralizadas, foi sendo gradualmente assumido pela cultura, tanto nos Estados pós-coloniais como, em seguida, nas nações subdesenvolvidas às voltas com os desafios da globalização e decididas ou resignadas a encontrar na identidade cultural uma válvula de escape.
Do lado do mercado, o vertiginoso crescimento do audiovisual (cinema, vídeo, música) colocou a cultura numa situação sem precedentes no elenco das fontes de riqueza nacional.
E a esse cenário, no primeiro ano do século XX, os atentados terroristas realizados em território norte americano acrescentaram novos elementos. A questão cultural assumiu contornos inéditos que expuseram seus componentes de negatividade ali onde antes se costumava enxergar apenas positividades. Antigas concepções de cultura revelam-se inadequadas, ao mesmo tempo em que um processo de domesticação da cultura torna se necessário redefini-la diante de pelo menos uma outra dimensão humana antes por ela abrangida: a arte.
“Nem tudo é cultura”; “Uma cultura para o século (tudo fora de lugar, tudo bem)”; “Uma cultura enfim leiga”; “Cultura é a regra; arte, a exceção” são os temas deste livro que penetra por caminhos poucos habituais do pensamento sobre a cultura.
O bairro de Oude Ocidental em Rotterdam, Holanda, está hoje repleto de lojas que vendem comida árabe – e uma antiga igreja cristã foi transformada em mesquita; perto, imigrantes turcos jogam baralho, nas calçadas. O oriente aproxima-se rapidamente do ocidente. No outro lado do mundo, no Tibet, o governo chinês muda o nome da velhíssima cidade de Zhongdian para Shangri-Lá – o mesmo, e não por acaso, da aldeia fictícia do Best seller de James Hilton Horizonte perdido, sucesso também do cinema. O ocidente ocupa o oriente sob um disfarce oriental imaginado pelo ocidente: realidade e ficção se sobrepõem. Em Nova Iorque, as Torres Gêmeas são abatidas e o compositor Stockhausen diz que esse ato foi a maior obra de arte da história. E do Brasil se podia e s e pode dizer, com Tom Jobim, que é aqui é muito ruim mas muito bom, enquanto nos EUA é muito bom mas muito ruim...
Esse é o cenário de um mundo onde as culturas soltaram as antigas amarras que as prendiam a territórios e gavetas determinadas (a da permanência, a da nacionalidade, a da identidade) e se puseram a vogar em todas as direções. E este é um livro que se propõe pensar contra o hábito cultural de pensar-se a cultura, ainda em vigor em vários setores da universidade e da política.