A mala (Tchemodan, 1986), livro que consagrou o nome de Serguei Dovlátov (1941–1990) como um dos principais escritores russos do século XX, faz uma viagem pelo tempo através da mala que ele levou consigo ao deixar a União Soviética (1978). Se em Parque Cultural, o autor-narrador hesita em partir de seu país natal e em O ofício já vive como um emigrado, em A mala ele desfaz a bagagem de recordações de sua Rússia particular.
Cada objeto da mala define uma parte do enredo — de um cinto de oficial do exército e sapatos da nomenclatura até uma jaqueta de Fernand Léger — e abre-se para uma passagem agridoce da vida do inconfundível narrador Dovlátov. Como o próprio autor descreve, “por trás de cada coisa dentro da mala, há uma história dramática, divertida ou absurda”.
Com uma narração envolvente, quase como se estivéssemos ouvindo causos numa mesa de bar, os relatos de A mala trazem contrabandistas, jornalistas de caráter duvidoso, escritores de passado obscuro, gênios incompreendidos, amizades desfeitas, amigos de copo, suicidas, ícones da sociedade soviética, tendo como pano de fundo a Leningrado dos anos 1970.
Por meio de objetos — que são “a história, a época, a marca dessa época, um índice, um monograma” — o livro delineia a atmosfera cultural da cidade criada por Pedro, o Grande e, de anedota em anedota, vai ganhando densidade existencial. Os acontecimentos biográficos,
que o autor retrata como bem entende, são apenas um pretexto para que ele desvele
camadas contrastantes da realidade, indo da anedota ao drama, como Ígor
Sukhikh observa no posfácio.
O narrador em primeira pessoa, confundido com o próprio autor, lança um olhar irônico sobre o ser humano e a sociedade, tocando em temas típicos da obra dovlatoviana, como a censura, o alcoolismo, o antissemitismo, as desigualdades sociais e o dilema da emigração, mas aqui ele se coloca em evidência. Ao dedicar uma das histórias ao relacionamento com sua esposa, encontramos um Dovlátov atônito com a própria (in)capacidade de amar.
E, como sempre, em sua prosa, “combinam-se o humor e a amargura, a desfaçatez e o sentimentalismo, a anedota ficcional e o documento factual”.