Imagine acordar um dia e perceber que você perdeu a memória. Não sabe onde está, como se chama, quem é sua mulher (ou marido), se é casado ou não, quem são - se é que existem - seus filhos... É o que acontece com Yambo, o protagonista do novo romance de Umberto Eco, "A Misteriosa Chama da Rainha Loana". Yambo lembra-se de Waterloo, de como se dirige um automóvel e se escova os dentes, mas não lembra quem ele é. Permanece a memória semântica (sabe tudo que leu sobre Napoleão ou Julio César e consegue citar trechos inteiros da Divina Comédia) e automática, mas perdeu-se a memória afetiva, o que constitui seu ser e sua própria história. Depois do coma que causou a amnésia, por recomendação médica, Yambo viaja para a casa de campo que fora de seu avô - um colecionador de tralhas, quinquilharias, jornais e revistas antigas -, nas montanhas do Piemonte, onde passou grande parte de sua infância e adolescência. E é lá que Yambo, na verdade Giambattista Bodoni, um comerciante de livros antigos já na meia-idade, mergulha em sua própria vida. Com a ajuda de músicas, odores, livros e quadrinhos, coisas que viu e tocou há sessenta anos, Yambo tenta retornar para o presente. De Flash Gordon e Dick Tracy ao primeiro amor, Umberto Eco resgata sua própria juventude, misturando-se, página a página, com seu protagonista. Justificando o subtítulo, Romance ilustrado, Eco passou dois anos à procura de imagens e ícones que representassem a memória de Yambo (e a sua própria). "A Misteriosa Chama da Rainha Loana" recompõe a história da Itália dos anos 1930 e 40. Eco traz à tona histórias de Julio Verne; discos de 78 rotações; figurinhas de álbuns famosos; gibis; as obras de Emilio Salgari; canções populares, por onde passam jovens frágeis e inesquecíveis (Signorinella pallida), outras, apaixonadas (C eravamo tanti amati), ousadas, patriotas (Le ragazze di Trieste); além dos hinos fascistas, com suas promessas de perenes primavera e juventude (Primavera, Giovinezza), visando ao fortalecimento moral das fronteiras do Império Italiano. E mais, o rádio de galena, as ondas curtas e a BBC de Londres. Toda uma semiologia que leva aos tempos do Fascismo e às portas da Segunda Grande Guerra.
Montado o quebra-cabeça, "A Misteriosa Chama da Rainha Loana" revela-se a autobiografia de uma geração. Um romance-fábula sensível que mostra que, muitas vezes, é preciso revisitar o passado para viver o presente. Um livro emocionante, cheio de calor e lembranças, de suspiros e saudades.
Literatura Estrangeira