Escavar o passado é tarefa árdua e dolorosa. Geralmente encontramos uma camada de fungos e líquens depositada sobre as nossas recordações mais preciosas – as imagens acham-se desbotadas e os ruídos abafados pelo tempo implacável do esquecimento. Por outro lado, as manchas e os relevos de nossas dores persistem como uma fruta que não para nunca de apodrecer em nosso quintal: não há como se desvencilhar das marcas que os afetos produziram em nossa carne. Eu consegui revisitar a minha história quando pisei em terra firme e me senti segura para fazê-lo: isto aconteceu precisamente em fevereiro de 2023 quando decidi me mudar para Paranapiacaba. Na companhia da neblina, dos pássaros e das locomotivas eu escrevi cada verso e vasculhei cada cômodo empoeirado do meu coração. As portas ficaram fechadas durante décadas porque o sofrimento dos desencontros e das despedidas foi quase insuportável em alguns momentos: precisei me afastar para suportar os descaminhos da vida – minha vó saindo de casa, minha mãe beirando seus próprios abismos, minha melhor amiga me dizendo adeus, meu primeiro amor desistindo de nós e minha última e mais repentina paixão se dissipando pelos ares. Eu nunca evitei a dor, mas demorei para aprender a esculpi-la sem me ferir e sem sangrar até morrer – às vezes desisti pois percebi que o meu limite estava próximo e escolhi continuar lutando e traçando os desvios que eram possíveis. Então certo dia acordei e decidi cicatrizar as feridas escrevendo – me cuidar e me curar de tudo que passei e de tudo que não experimentei em função do meu destino – uma hora resolvi aceitá-lo e afirmá-lo apesar de suas rupturas, quedas e desmoronamentos. Amar é um exercício de acolhimento em relação ao trágico que nos habita – eis a viagem que inicia aqui e que não termina na última página deste livro.
Ficção / Literatura Brasileira / Romance