Se, na idade moderna, a sociologia, a ciência política e outras formas de conhecimento tomaram para si a razão ficcional aristotélica, produzindo narrativas com começo, meio e fim, invertendo ao final as expectativas, a ficção moderna trilhou o caminho contrário e instaurou no centro da literatura aquilo que sempre esteve nas suas beiradas — os acontecimentos triviais, os seres humanos comuns e o momento qualquer que pode condensar uma vida inteira.
Em As margens da ficção, Jacques Rancière acompanha esse processo revolucionário inicialmente nas obras de Stendhal, Balzac, Flaubert, Proust e Rilke. Num segundo momento, aproxima a razão investigativa de Marx, no ensaio “Os segredos da mercadoria”, dos procedimentos dedutivos colocados em prática no romance policial fundado por Poe.
Uma atenção especial merecem os romances de Conrad, Sebald, Faulkner e Virginia Woolf — além das Primeiras estórias, de Guimarães Rosa — que, apagando as fronteiras entre realidade e ficção, conduzem a investigação a um outro nível de complexidade. Aqui a ficção pode anular-se, mas também realizar aquilo que, na contemporaneidade, talvez seja a mais profunda razão de ser da literatura — inventar novas formas de coexistência num mundo sensível comum, fora do “tempo da destruição”.
Filosofia / Não-ficção / Política