A história do cinema coincide com a história da dança no século XX. Num certo nível, o filme serviu como forma de registro para o desempenho da dança nos últimos cem anos. E na medida em que se desenvolveu como forma de arte, o próprio filme se interrelacionou com a dança para criar um fenômeno novo: a dança cinematográfica, criada expressamente para o cinema, tendo em mente a câmera, o enquadramento e a montagem. "E o mais memorável número de dança isolado do cinema é o solo de Gene Kelly, Cantando na chuva, no filme de mesmo nome, do qual ele foi co-diretor com Stanley Donen, em 1951", afirma Peter Wollen, autor do segundo volume da coleção ArteMídia, publicado pela Editora Rocco.
O livro leva o nome do filme e revela uma profundidade que se oculta na aparente frivolidade da obra, apresentando a trajetória de Kelly, a história do cinema americano nos anos 40/50 e uma análise da realização coreográfica no processo cinematográfico.
No início dos anos 40, os números musicais passam a ocorrer a intervalos regulares dentro da história, costurados na ação dramática. No mesmo período, Gene Kelly deixava sua cidade natal, Pittsburgh, para trabalhar em Nova York e posteriormente em Hollywood.
"Verifiquei que na maioria das peças-balés não havia personagem que não pudesse ser interpretado através da dança, se você encontra linguagem coreográfica adequada. Isso pode parecer óbvio agora, mas na época foi uma descoberta muito importante para mim", diz Gene Kelly no livro de Wollen. O autor também revela que a construção do cenário onde ocorreu a seqüência de Cantando na chuva exigiu um complexo trabalho de engenharia, com iluminação especial e água colorida para tornar o temporal visível. "Mas o efeito da seqüência estaria incompleto sem a atenção de Kelly para a filmagem da dança e a encenação para a câmera", observa Wollen.
O ator-dançarino revela lições preciosas. Primeiro: o movimento num filme é sempre movimento em relação à câmera, e o feito visual de olhar através do olho da câmera para uma tela é diferente daquele de olhar por um olho humano para um palco. Segundo: movimentos laterais, se não forem minuciosamente planejados, anulam-se uns aos outros. "E por fim, quem quer ou o que quer que você esteja representando, você tem que permanecer totalmente dentro do personagem enquanto dança", ensina ele.
Wollen também relata a perseguição sofrida pelo ator, em conseqüência de suas posições socialistas, no tempo da caça às bruxas, quando qualquer espécie de protesto ou defesa de direitos era confundida com comunismo.
Em 1982, no qüinquagésimo aniversário da revista Sight and Sound, na votação de críticos do mundo inteiro para a lista dos "Dez Mais", Cantando na chuva ficou em quarto lugar, acima de 8 e ½ de Fellini, O encouraçado Potemkin de Eisenstein e Um corpo que cai, de Hitchcock. "O filme de Gene Kelly trata de um momento crucial na história do cinema, o da chegada do som, levantando questões acerca das relações entre som e imagem, autenticidade e inautenticidade e assim por diante, tudo revestido generosamente de canções, piadas e brilhantismo de espírito", diz Wollen.