A escritora russa Téffi (1872-1952), uma artífice magistral da história curta, formato que a consagrou e suscitou comparações com Anton Tchékov, é publicada agora pela primeira vez no Brasil. O volume Contos traz um apanhado de 28 textos da autora, escritos entre 1910 e 1952. O livro está dividido nas duas principais fases da vida da autora: Na Rússia e Na imigração, quando a escritora se instala em Paris. Em ambas, Téffi observa com humor sutil – às vezes até feroz e quase sempre com desenlaces ambíguos – os hábitos e costumes da burguesia dos dois lados da fronteira ocidental russa, com um estilo direto e moderno. A edição tem tradução de Priscila Marques, Letícia Mei e Raquel Toledo, também autora do posfácio e selecionadora dos contos, e projeto gráfico de Mayumi Okuyama.
Admirada tanto por Lênin quanto pelo tsar Alexandre II, tanto pelos patrões como pelos operários, e publicada tanto na imigração quanto na União Soviética, Téffi foi extremamente popular entre os leitores de seu tempo – a ponto de dar nome a vários produtos, de perfumes a doces. O traço humorístico de sua escrita, privilegiado na coletânea, foi o que lhe trouxe o reconhecimento, mesmo sendo uma rara figura entre os satíricos, como explica Raquel Toledo no posfácio: “uma mulher”. Para a professora de literatura, Téffi – pseudônimo de Nadejda Aleksandrovna Lokhvitskaya – foi “uma das muitas autoras que o cânone, acostumado a privilegiar os homens, escondeu”.
Na antologia há pequenas joias de autoficção, com títulos explicativos: A literatura na vida, Como vivo e trabalho, Meu primeiro Tolstói, Nostalgia, Que faire? (acerca das antipatias mútuas entre esses refugiados) e O pseudônimo (“Não queria me esconder atrás de um pseudônimo masculino. Seria fraco e covarde.”).
Outro exemplo marcante, e historicamente precoce, de autoficção é Raspútin, que narra dois encontros com o “mago” adotado pela decadente família real russa. Os encontros aconteceram de fato, e a escritora descreve um homem que, apesar de certo magnetismo, é uma figura repulsiva e autoritária que faz avanços libidinosos sobre as mulheres a seu redor.
Crianças, animais e os costumes do campo se destacam em vários contos do volume, um deles uma espécie de paródia de histórias sobrenaturais, que tem um cachorro como figura central. Em outros contos sobressaem personagens femininas, ora tolas, ora sábias.
A ordem dos contos permite acompanhar os pontos de vista da autora em relação à política russa, da simpatia pelos bolcheviques até a decepção progressiva que a levou execrar o processo revolucionário e iniciar um périplo pela Europa Ocidental até se estabelecer em Paris. Téffi mira a burocracia, o mundo jurídico, os hábitos religiosos e as festas burguesas russas. Um dos personagens diz que “a Rússia não se pode compreender com a mente”.
No primeiro apanhado encontra-se um conto espirituoso e equivalente a um tratado sobre a imbecilidade. Mais à frente surge Um dia no futuro, talvez a sátira mais demolidora de Téffi aos bolcheviques, que considera iletrados. Em tom semelhante a escritora cria, no conto Florzinha Branca, uma discussão sobre a necessidade (ou não) de pedir a Deus que perdoe Lênin, visto como um criminoso.
Em um trecho do livro, Téffi enuncia seu credo de escritora: “De modo geral, considero que as histórias mais maravilhosas do mundo são muito mais numerosas do que pensamos. É preciso apenas saber ver, saber seguir o verdadeiro fio dos acontecimentos, sem afastar conscientemente aquilo que nos parece inacreditável, sem embaralhar os fatos e sem impor as nossas explicações a eles”.
Contos / Literatura Estrangeira