Um erro de ortografia é algo que não se pode aceitar, corre-se até riscos desnecessários para consertar essa afronta. Já a tortura de um recém-nascido, para arrancar informações de sua mãe, é algo aceitável dentro dos limites da luta contra a subversão.
Duas vezes junho, primeiro livro no Brasil do escritor argentino Martín Kohan, está montado sobre dilemas morais que denunciam o papel da ditadura argentina, mas sem qualquer tom panfletário. O futebol, que permeia todo o livro, já que a história se passa entre duas copas do mundo, a de 78 e a de 82, também serve para questionar alguns mitos nacionais desse país. É por isso, talvez, que a seleção nacional é derrotada nas duas partidas que são narradas no livro. O mais curioso é que a Argentina foi campeã mundial em 78. Por que escolher a sua única derrota? Terá isso a ver com a famosa tristeza dos moradores de Buenos Aires? Ou será uma necessidade de trazer à tona as más recordações, como os corpos desenterrados sem cabeça e sem digitais que ainda surgem inesperadamente?
O contexto histórico, de resgate das tradições e de figuras centrais da Argentina, dominou todos os livros de Kohan até o momento. De San Martín, herói da independência, passando pelo poeta Estebán Echeverría, e, como não poderia deixar de ser, chegando até Eva Perón. Desde o lançamento deste livro, Kohan é reconhecido como um dos mais importantes novos escritores da Argentina, tão pródiga em grandes escritores, e que talvez seja, em toda a Hispano-América,o país onde a literatura alcançou o mais alto nível em termos de inventividade, rupturas e revoluções.
Ficção / Literatura Estrangeira / Romance