“Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança” (Dante Aliguieri)
O inferno seduz e, não por acaso, está cheio, em grande parte pela ação de pessoas repletas de boas intenções. Há, ainda, aqueles que preferem ignorá-lo. E ignorar, não refletir ou tornar inconsciente também produz efeitos. Freud, responsável por construir toda uma teoria a partir da crença em um saber que não se sabe, apostou no conceito de recalque para explicar o processo que visa manter no inconsciente certas idéias ou representações, o que acaba por gerar efeitos profundos nas vidas daqueles que as ignoram. Como percebeu Giorgio Agamben, “é possível até que seja precisamente o modo como conseguimos ignorar que define o estatuto do que conseguimos conhecer” e, mais do que isso, que a existência de uma zona de não conhecimento acabe por funcionar como condição de possibilidade de todo o nosso atuar. Assim, por exemplo, não (re)conhecer nossa contribuição diária para o inferno, o caráter perverso, autoritário, preconceituoso ou mesmo demoníaco de nossas próprias ações, ajuda a dormir o sono dos bons. No sistema de justiça criminal, todos os dias, atores jurídicos repletos de boas intenções ignoram a seletividade da pena e da persecução penal, esquecem a superlotação carcerária, consideram os direitos fundamentais (conquistas de muitas lutas e que custaram tantas vidas) como óbices à eficiência do Estado, aderem ao cognitivismo ético (com seus juízos moralistas e hipócritas), elegem inimigos (e o inimigo é sempre o outro, aquele que pode ser humilhado) e tratam as pessoas como meros objetos a serviço dos fins do Estado. Inseridos em uma tradição autoritária, que se caracteriza pela crença no uso da força como resposta preferencial aos mais variados problemas sociais, fecham os olhos para a estratégia de fazer do sistema penal (tanto o oficial/legal quanto o subterrâneo/ilegal) um dos principais instrumentos de contenção da multidão de indesejáveis (pessoas que não interessam ao processo de produção, não dispõem de condições econômicas para consumir ou, ainda, ousam resistir e lutar contra esse estado de coisas) que incomoda o sistema capitalista, no atual estágio que se caracteriza justamente pelo excesso de capitalismo (crise gerada pelo sucesso desse modelo que se tornou hegemônico, marcada pelo excesso de produção em um contexto em que não existem consumidores para tanto: nessa quadra, o capitalismo transmuta-se de um momento de “explora- ção do homem pelo homem” para outro, ainda mais demoníaco, em que se dá a extinção/eliminação do homem pelo homem).
Neste livro, Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr. propõem profanar o sistema penal, desvelar o inferno. E o fazem com talento, senso crítico e bom humor (o mesmo humor que, ao longo da história, já foi utilizado como estratégia de sensibilização para temas difíceis: basta lembrar o genial Charles Chaplin e sua denúncia do totalitarismo e da razão instrumental). Nos textos desse livro, os autores adotam uma postura de combate frente aquilo que identificam como desvios, manifestações de autoritarismo e graves distorções que afetam a construção de uma sociedade que se preocupe com liberdade, igualdade e fraternidade, mas que acabaram naturalizadas diante do processo (por evidente, útil à produção e comercialização de mercadorias) que gerou um novo sujeito: acrítico (um ser demitido da faculdade de julgar, tal qual Eichmann – um a-sujeito), psicótico (ou, na melhor das hipóteses, perverso, posto que marcado pela ausência de limites à realização de suas pulsões) e egoisticamente acomodado.
Em adesão ao conceito gramsciano de “guerra de posições”, pode-se afirmar que Alexandre e Salah buscam, através de seus textos, lutar pela produção de novos subjetivismos e romper com as concepções hegemônicas que fazem do direito, e mais especificamente do processo penal brasileiro, um instrumento de manutenção do status quo e, portanto, de práticas antidemocráticas. Para tanto, denunciam as falácias e perversões do discurso encontrado em diversos “manuais de direito”, que procura justificar toda uma epistemologia autoritária, e desvelam os conceitos, categorias e práticas que impedem a concretização dos direitos fundamentais (e, portanto, são contrários à dimensão substancial da democracia), mas que ainda continuam a disposição para ser utilizados em plena democracia (tem-se aqui o que se convencionou chamar de “permanências autoritárias”). Em suma, como diria Walter Benjamin, os autores “escrevem a contrapelo” sobre o direito, o processo e o sistema penal. Para além da dimensão de crítica, os textos deste livro assumem um compromisso ético (poder-se-ia falar em uma dimensão “ético- -poética”), na medida em que integram um processo de produção de um saber em favor do outro (em especial, daquele que mais necessita), que parte do reconhecimento da alteridade, mas que se assume como produção de vida, um texto marcado por afetividades e as expressões que delas surgem, com um certo modo de fazer contato com as coisas do mundo em homenagem a Eros e para se distanciar de Thanatus. Registre-se, por fim, mais uma qualidade deste livro: os textos que compõem o “In Dubio Pro Hell”, inicialmente publicados em uma coluna semanal no portal “Justificando” e que agora são apresentados aos leitores em versão ampliada, foram escritos em uma linguagem que se revela simples, capaz de agradar até ao público não especializado, e que, ao mesmo tempo, carrega a profundidade necessária à emancipação intelectual proposta pelos autores. Alexandre e Salah sabem que é preciso libertar as almas dos atores jurídicos das correntes de um pensamento que naturaliza a barbá- rie e o autoritarismo, bem como que o homem pode ser tentado para o mal exatamente pelas potências do direito e da lei (o sistema de justiça criminal tem um enorme potencial de produzir o mal a partir do bem), por essa razão apresentam um livro que funcionará como um antídoto ao entorpecimento da razão crítica e dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade; um livro que nasce com a vocação de ser lido por todos aqueles que não perderam a capacidade de se indignar com os arbítrios e as diversas formas de opressão: ó leitor, vós que estais com esse livro, tens condição de resgatar a esperança e transformar o sistema penal.
(Rubens R R Casara)
Direito