Pouco a pouco, toda a obra de Autran Dourado vem sendo reeditada pela Rocco, com textos revistos pelo autor e capas novas criadas pelo artista plástico Ciro Fernandes. E chegou a vez da maior das raridades deste que é um dos mais brilhantes escritores brasileiros: Tempo de amar, seu primeiro romance, publicado originalmente em 1952. Na época, o genial prosador mineiro tinha apenas 26 anos, mas já apresentava todos os ingredientes que se tornariam marcas registradas de sua literatura: os personagens fracassados cujas vidas se arrastam, os perfis psicológicos bem delineados, as palavras escolhidas a dedo e a cuidadosa carpintaria das frases, construídas com a perfeição de um grande mestre.A figura central de Tempo de amar é Ismael, um homem que prefere o brilho das recordações de infância ao presente grotesco. Quando era criança, no início do século XX, tudo parecia perfeito: a próspera Fazenda dos Mamotes, onde seu avô, o coronel Eupídio Silveira, abrigava toda a família; o açude onde tomava longos banhos com a irmã, Ursulina, e a prima, Tarsila; o cheiro do bolo de fubá da avó, dona Ritota; as brincadeiras típicas da idade. Mas tudo isso foi ladeira abaixo depois do dia em que sua irmã morreu afogada bem na sua frente, aos 9 anos, sem que ele tivesse a iniciativa de tentar salvá-la. Era sua característica apatia começando a dar sinais.O trágico incidente levou embora não apenas a vida de Ursulina, mas também a inocência de Ismael. Com isso, veio a percepção de que nem tudo ao seu redor era tão belo quanto parecia. O avô, que enterrava suas emoções o mais fundo que podia, esvaziava todo o seu silêncio e sua tristeza no ventre de uma mulata sustentada por ele. A avó sabia disso e tentava não se importar. O poder de seu sobrenome era cada vez menor em Cercado Velho, sua cidade natal, no interior de Minas Gerais. Sua tia Evangelina, recém-egressa de um casamento realizado contra a vontade dos pais, sonhava ver a filha Tarsila casando-se sem amor, como alguém que cumpre um dever apenas por cumpri-lo – para ela, o amor é uma erva daninha, um vício destrutivo que só serve para desencaminhar as pessoas.Ainda assim, Ismael prefere a nostalgia à realidade. Dia após dia, seu pai, Bento, exige que ele arrume um emprego e faça jus aos seus tantos anos de estudo, pagos com dificuldade. Mas o próprio Bento é um fracassado, que sustenta uma mulher no Bordel do Largo, enquanto sua esposa, Celeste, finge não saber. "Não me interessa profissão digna e honesta, nem futuro nem coisa alguma", diz Ismael. Tudo que ele faz é ver o tempo passar, ler sem interesse, andar sem rumo. É com muito custo que seu pai consegue obrigá-lo a trabalhar no cartório de seu Tinoco.Nenhuma alegria consegue inundar Ismael por muito tempo. E isso vale também para Paula, que ele namora escondido. Ela é a chacota da cidade, por ser filha de uma ex-prostituta e não saber quem é seu pai. Todas as suas esperanças de felicidade estão no sonho de fugir de Cercado Velho com Ismael e se casar. Ele também parece determinado a fazer isso, mas perde completamente o interesse depois que tira a virgindade de Paula, na capela-mor de uma igreja abandonada. É nesse emaranhado de vidas apáticas, sem sentido e sem amor, que se desenvolve a história. Não por acaso, o meio acadêmico já traçou um paralelo entre a errância de Ismael e a de Turnus, personagem da Eneida, de Virgílio.Antes de Tempo de amar, Autran Dourado já havia publicado outros dois livros: Teia, em 1947, e Sombra e exílio, em 1950. Mas eram novelas, não romances. Em 1973, ele lançou Uma poética de romance: matéria de carpintaria, já reeditado pela Rocco, em que ele desvenda o processo de criação de Tempo de amar. E em 1995, os personagens de sua estréia como romancista voltariam no também reeditado Ópera dos fantoches, que mostra Ismael já no início da velhice, relatando sua vida ao escritor João da Fonseca Nogueira, personagem presente em várias histórias do autor