“Não quero ser menina. Também não quero ser menino. Tudo o que eu quero é ser eu.”
Quando Maia Kobabe nasceu, no fim dos anos 1980, nas imediações de San Francisco, foi identificade como menina. Desencanada e hippie, sua família não parecia se preocupar muito com os códigos de gênero na educação dos filhos, mas, assim que passou a conviver com outras crianças, Maia notou que nada daquilo que teimava em encaixar seu corpo e personalidade no gênero feminino — roupas, brinquedos, gestos, pronomes — correspondia à sua autoimagem. Por que uma menina não pode nadar sem camiseta?
Na adolescência, Maia percebeu que o seu desejo também não seguia o roteiro-padrão das descobertas sexuais: sentia uma inexplicável atração por colegas andrógines e não conseguia ficar com ninguém. Esse e outros dilemas da adolescência — Maia não sabia por que “precisava” raspar os cabelinhos da perna ou usar maiô, sentia pânico diante da menstruação e das primeiras consultas no ginecologista, descobriu tardiamente seu gosto pela leitura (e logo depois se apaixonou pela literatura queer) — são narrados no livro em tom afetivo e sincero, que nos transporta para perto de Maia.
Maia saiu do armário duas vezes: primeiro, como bissexual, durante o ensino médio. Mais tarde, na faculdade, como assexual (alguém que não sente ou sente pouca atração sexual por outra pessoa, independentemente de gênero), queer e não binárie (que não se identifica com o gênero masculino nem com o feminino). Nesta HQ autobiográfica, Maia narra esse processo de questionamento dos padrões de gênero, transição e afirmação, até adotar o gênero queer — palavra que perdeu seu primeiro sentido, de “não convencional, excêntrico”, para abarcar inúmeras possibilidades.
Gênero queer percorre cada etapa dessa jornada ao som de David Bowie e One Direction, com muito Tolkien, Harry Potter e fanfics. Em meio a uma profusão de saborosas referências pop e nerds, acompanhamos a educação sentimental de ume jovem na Califórnia da virada do século, em um ambiente de liberdade nos costumes, efervescência cultural, curiosidade intelectual e profundas dúvidas sobre gênero e sexualidade — muitas delas, exatamente as mesmas que todes temos na adolescência.
Gênero queer se filia à linhagem das grandes graphic novels de não ficção de nossa época, como Maus, de Art Spiegelman, Persépolis, de Marjane Satrapi, e Fun Home, de Alison Bechdel — notáveis por sua capacidade de levar o leitor a uma jornada de conhecimento de um novo universo cultural por meio de uma narrativa magnética e vibrante.
Desde sua publicação original, em 2020, o gibi de Maia Kobabe abriu cabeças, se tornou best-seller ― as diferentes edições já lançadas superam os 100 mil exemplares vendidos ― e recebeu prêmios: ganhou o Alex Award, concedido pela ALA, a Associação Norte-Americana de Bibliotecas, e foi finalista do Stonewall Book Award, que premia narrativas LGBTQIA+.