Antes de tudo, este é um livro divertido e inteligentíssimo, guardando surpresas para o leitor a cada frase. Sendo um exercício de aprendizagem para o autor, que se iniciava na arte da narrativa curta no começo da década de 1930, é ao mesmo tempo um texto de livre experimentação, uma vez que nele Borges se permite ousadias de invenção sobre histórias alheias e próprias, em larga medida inspirado pelas releituras de Stevenson, pela prosa de Marcel Schwob, pelos filmes iniciais de Josef von Sternberg, além da pintura, estimulado, quem sabe, por sua amizade com os pintores Xul Solar e Pedro Figari.
Embora as histórias que compõem o volume tenham sido tiradas, em grande parte, de livros de outros autores, o trabalho abissal de reescrita é a novidade, complexa e de grande força expressiva, pois depende da criação incomum de pormenores circunstanciais de longo alcance que, por meio de sua concretude e particularidade, ampliam e adensam os significados dos argumentos que aproveita, imprimindo-lhes um sentido inesperado. São obra de um leitor mais tenebroso e singular que os bons autores, como se anuncia num de seus dois prólogos notáveis.
Essa arte de deturpar textos alheios em biografias imaginárias decalcadas pelo estilete da cortante ironia prepara o terreno para o voo solo de um narrador tímido num conto desconcertante: “Homem da esquina rosada”. Já pela forma do título, ele evoca quadros de uma exposição, no caso, uma galeria de valentões suburbanos de uma vasta mitologia portenha: eles arriscam a pele na rivalidade dos punhais até o momento de uma revelação simbólica, mediante uma prosa singularmente mesclada da mais atrevida oralidade popular com a linguagem culta.
Como Mário de Andrade ou, mais tarde, Guimarães Rosa, Borges descobre as veredas para transformar a matéria local argentina em símbolo universal.