De autoria coletiva e transnacional, os textos de Quem deve a quem? denunciam o endividamento como uma forma de violência econômica. Longe de ser um problema individual, uma consequência do fracasso pessoal ou da má gestão financeira, autoras e autores mostram aqui como a dívida é, na verdade, um mecanismo de acumulação do capital e de resiliência do sistema colonial: a dívida externa sendo a perpétua justificativa para políticas de austeridade e consequente desinvestimento em serviços públicos, e a dívida doméstica atingindo aquele mesmo sujeito-corpo explorado, expropriado e vilipendiado pela colonização; que “não tem propriedade porque historicamente foi construído como propriedade” e que é “racializado e sempre feminizado”. Além de profícuo material de denúncia, os dezesseis artigos que compõem esta obra oferecem exemplos de iniciativas de luta contra o domínio financeiro sobre nossa vida.
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A dívida funciona como o maior mecanismo de acumulação de riqueza para o capitalismo atual e, simultaneamente, atua como uma forma de controle social. É uma ferramenta política do capital para explorar e confiscar a vitalidade social e determinar o tempo futuro.
Isso significa que a financeirização não é um processo que se desenvolve por si mesmo, mas que interpreta e captura um desejo de autonomia expressado pelas lutas em distintos ciclos de organização ao mesmo tempo que responde a essa ânsia. Assim, o avanço das finanças sobre a reprodução social, especialmente sobre as economias feminizadas, é uma resposta às demandas feministas pelo reconhecimento de tarefas historicamente desvalorizadas, mal pagas e invisibilizadas, e a um desejo de autonomia econômica. […]
Chamamos esse processo de colonização financeira da reprodução social, já que toma as populações mais empobrecidas e precarizadas como território de conquista e as torna dependentes da dívida para sua economia cotidiana. Quando a relação de dívida se volta para baixo, difundem-se em cascata os efeitos da dívida contraída pelos Estados. As espoliações e as privatizações que provocam o endividamento estatal se transformam em endividamento forçado dos setores subalternos, que passam a acessar bens e serviços através da dívida. O efeito produzido é o de se alterar tanto a relação entre renda e dívida quanto entre dívida e acesso a direitos. O propósito é converter a vida em uma soma de dívidas: a que pagamos por nosso país e a que pagamos pessoalmente. […]
É preciso dizer: “basta!”. Diante da riqueza desmedida, devemos pôr um fim às novas formas de escravidão pelo endividamento e à servidão involuntária à qual o capitalismo financeiro nos submete. A obrigação da dívida, a sentença de que não nos resta outra opção senão nos endividarmos para viver, demonstra que a dívida funciona como ferramenta produtiva. Coloca-nos para trabalhar. Obriga-nos a trabalhar mais. Compele-nos a vender nosso tempo e nosso esforço futuro. Propõe, como horizonte, que paguemos até morrer. Deseja comandar nosso esforço por décadas e prolongar-se por gerações. Dívidas para a vida inteira. Dívidas alimentadas como obrigação graças ao sentimento de culpa que diz respeito à nossa responsabilidade como devedoras, ao nosso fracasso como empreendedoras, às nossas responsabilidades como cuidadoras, às nossas exigências por serviços públicos. A dívida suga nossa energia vital.
— Silvia Federici, Verónica Gago e Luci Cavallero, na Introdução