Gostemos ou não, o capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, é uma das personalidades mais fascinantes da história brasileira. Transformado em lenda mesmo quando era vivo, o Rei do Cangaço ainda tem presença muito forte no imaginário popular do sertão nordestino, e inspirou um leque amplo e variado de obras artísticas, populares e eruditas, nas suas mais diversas linguagens, seja na música, no cinema, no teatro e nas artes plásticas. Curiosamente, a literatura nacional não dedicou a esta figura mítica a devida atenção. Tirando fora a peça teatral Lampião, de Rachel de Queiroz, são desconhecidas as obras literárias que abordam as aventuras do maior bandoleiro rural do Brasil, transformando-as em matéria-prima de enredos que possam ir além da descrição nua e crua dos seus crimes e das análises sociológicas de suas motivações. Faltam abordagens calcadas em mentiras mais verdadeiras do que os fatos, que é o que caracteriza a boa ficção.
É esta lacuna que o escritor Marcondes Araujo espera preencher, com este provocativo romance, Um repórter do futuro no bando de Lampião. Escrito num estilo que mistura o naturalismo com o realismo fantástico, o romance passa ao largo da já desgastada polêmica em torno da questão: “Lampião era herói ou bandido?”, e procura mostrá-lo como um ser humano bem mais complexo e desconcertante, acima desta dicotomia previsível e reducionista, que já não interessa mais a ninguém.
Para isto, o autor lança mão da intertextualidade, inserindo no enredo e na própria fala-discurso de Lampião os mais surpreendentes recortes de textos literários, dos mais diversos autores, desde Glauber Rocha a Guimarães Rosa, passando por Kafka, João Régio, Nietzsche, Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré, Torquato Neto, Tom Zé, Graciliano Ramos e Luiz Gonzaga, buscando, com isto, encontrar no pensamento desses criadores uma caixa de ressonância para o espírito libertário, e ao mesmo tempo reacionário, do Rei do Cangaço. Com todas as suas contradições, Lampião é apresentado, nesta obra, não como um protorrevolucionário socialista, tipo Pancho Villa ou Emiliano Zapata, como querem alguns intelectuais de esquerda, mas como o mais puro e cruel representante do tosco e desumano liberalismo brasileiro.
O personagem fictício Deus-te-guie é um cangaceiro neófito, que acompanha o bando de Lampião, após o assassinato de seu pai, não para vingar este crime, mas para vingar-se de si próprio, acossado que vive por dramas existenciais incomuns a um sertanejo daquela época, e que acaba encontrando como válvula de escape a passagem para um outro mundo, que só pode existir no futuro, mesmo que este futuro reserve para ele uma grande decepção. E o passe para o futuro é representado pelo próprio narrador da história, um jornalista que conseguiu, de forma inexplicada, cruzar a barreira do tempo e voltar ao passado para entrevistar Lampião e testemunhar o encontro que sua mãe, ainda quase uma criança, tivera com o bandoleiro, muito antes dele nascer.
O romance também resgata dois episódios da história de Lampião que foram negligenciados pelos historiadores do cangaço: um foi a estadia do cangaceiro nas fazendas do coronel Petronílio Reis, no norte da Bahia, durante quatro meses, ocasião em que Virgulino procurou abandonar a carreira criminosa, o que não teria acontecido por causa de uma suposta traição perpetrada pelo chefe político. O outro foi a passagem de Lampião pela Serra dos Morgado, povoado do norte baiano, que aconteceu no intervalo entre a invasão do cangaceiro à cidadela de Itumirim, onde incendiou uma estação de trem, e sua chegada a Brejão da Caatinga, onde matou seis soldados no meio da praça do lugarejo. Este episódio, não mencionado na historiografia do cangaço, é contado em detalhes pelo autor do romance, com base no que ouviu contar sua mãe, que conheceu pessoalmente o Rei do Cangaço quando tinha 12 anos, e testemunhou o pernoite da cabroeira naquela comunidade sertaneja.