Ana Aymoré 22/02/2019O libertino e a senhora do salãoChordelos de Laclos é um daqueles raros casos na história da literatura de um indivíduo que mirou pouquíssimas vezes na escrita ficcional, e quando o fez acertou no alvo. As relações perigosas (Les liasons dangereuses), de 1782, é o único romance desse general do exército francês no reinado de Luís XVI: um clássico da literatura do século XVIII, adaptado várias vezes para o cinema e para produções televisivas.
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O romance, escrito na forma epistolar, retrata a decadência do Antigo Regime absolutista na França às vésperas do turbilhão revolucionário de 1789, através do desnudamento das intrigas amorosas da sociedade cortesã. E esse retrato de um tempo e de um estrato social se delineia, basicamente, de duas formas: através da crítica ao "teatro" das relações sociais no círculo da nobreza, que ocorre por meio de um culto das aparências, das reputações e da superficialidade, e no qual os sentimentos nobres (no sentido mais profundo de "nobreza") são arrasados pelo jogo das vaidades; através da ênfase na sexualidade, que por sua vez, na economia do texto, remete à licenciosidade e ao poder.
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O Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil, protagonistas e vilões do romance, são representações de dois tipos sociais: o libertino (imortalizado na célebre figura do Dom Juan) e a "senhora do salão" (aspecto interessante da ascensão feminina na vida pública no contexto do iluminismo). O verniz da racionalidade oculta as fraquezas das personagens do romance que, todas, sucumbem à irracionalidade do amor.
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Embora a clara predominância de Merteuil ao longo da narrativa remeta para possibilidades de leitura pela via do feminismo, há, como se pode imaginar, uma clara assimetria entre o destino das personagens masculina e feminina (ambas igualmente execráveis em seu comportamento): para Valmont, a redenção através do sacrifício; para Merteuil, a execração pública e a desfiguração. O que aponta, sem dúvida, para um moralismo misógino, que não abre mão de lançar a culpa sobre a mulher que, dona de si, escapa ao poder masculino.