Livros da Julie 30/09/2024A maestria de Zafón em uma história envolvente e personagens cativantes-----
"se combatia em nome de Deus e da Pátria apenas para tornar ainda mais poderosos homens que já tinham influência demais"
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"ninguém chega a ser um atleta (...) porque nasceu alto, forte ou rápido. O que faz o atleta, ou o artista, é o trabalho, o domínio do ofício e a técnica. "
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"Para chegar a qualquer lugar (...) é preciso primeiro a ambição, depois o talento, o conhecimento e, finalmente, a oportunidade."
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"Não se convence ninguém da verdade de alguma coisa na qual não precisa acreditar por imperativo biológico."
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"o homem é um animal moral num universo amoral, condenado a uma existência finita e sem nenhum outro significado além de perpetuar o ciclo natural da espécie."
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"É impossível estabelecer um diálogo racional com alguém a respeito de crenças e conceitos que não foram adquiridos através da razão."
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"corações (...) só podem se partir de verdade uma vez. O resto são apenas arranhões."
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"Não cometa o erro de confundir a palavra de Deus com a indústria do missal que dela vive."
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"os seres humanos aprendem e absorvem idéias e conceitos através de narrativas, de histórias, e não de lições magistrais ou discursos teóricos."
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"qualquer intriga medianamente sólida, inclusive as passionais, nasce e morre com cheiro de dinheiro e de propriedade imobiliária."
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"Toda manobra de persuasão que se preze apela primeiro para a curiosidade, depois para a vaidade e, por último, para a bondade ou o remorso."
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"Nada nos leva a acreditar mais que o medo, a certeza de estarmos ameaçados. Quando nos sentimos vítimas, todas as nossas ações e crenças são legitimadas, por mais questionáveis que sejam."
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"O medo é a pólvora, e o ódio, o pavio. O dogma (...) é apenas um fósforo aceso."
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"É difícil odiar uma ideia. (...) É muito mais fácil odiar alguém cujo rosto é reconhecível e quem podemos culpar por tudo aquilo que nos incomoda. (...) Pode ser uma nação, uma raça, um grupo"
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"se fôssemos capazes de ver a realidade do mundo e de nós mesmos, sem rodeios, por um só dia, (...) daríamos cabo da própria vida ou perderíamos a razão."
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O jogo do anjo é o primeiro livro da série O cemitério dos livros esquecidos, lido com as @mafaguifinhos, @nleituras e @tatinessie.
Aos 17 anos, David Martín finalmente obteve a chance de escrever para o jornal onde trabalhava como assistente. Seus contos policiais rapidamente caíram na graça do público e se tornaram um sucesso. Daí para se tornar autor de romances foi um pulo.
Apesar do talento, a sorte não lhe sorria facilmente. Ele não tinha mais família, a mulher que amava o ignorava e ele não suportava mais escrever livros baratos e anônimos em um ritmo insano, sem poder colher os louros da fama.
Sozinho, com a saúde deteriorada e a alma destroçada, David recebe uma estranha proposta de Andreas Corelli, um editor deveras enigmático. A oportunidade de criar a obra sugerida é tentadora, mas poderá custar a David muito mais do que alguns meses de pesquisa e dedicação.
Zafón nos guia por mais uma narrativa cercada de drama e mistério, escrita depois de A Sombra do vento, mas que a antecede na história. Com seu estilo envolvente e especial de construir a trama e apresentar reviravoltas, o autor consegue nos manter em constante tensão.
As circunstâncias inquietantes e os momentos comoventes testam as emoções. A tristeza ronda as páginas como Corelli. O peso da história, no entanto, é aliviado por diálogos irônicos e sagazes e pelo humor ácido que tempera a autodepreciação característica do narrador.
Zafón nos faz percorrer a Barcelona dos anos 20 como habitantes, destacando as novidades urbanísticas e arquitetônicas trazidas pela Exposição Universal de 1929. Seguindo os passos de David, conhecemos não só os pontos turísticos dignos de cartão postal e os bairros abastados, como também os subúrbios miseráveis e as vielas ermas, que deságuam em locais e construções decadentes e misteriosas.
A ambientação é bastante sinistra e gótica, apesar da ênfase na luminosidade em contraste com as sombras reinantes. As nuvens abundantes e o céu em todos os seus tons perfazem o cenário perfeito para a ação. Podemos quase sentir a umidade dos becos escuros, o frio e o vento que açoitam a cidade, a chuva que encharca até pensamento.
Nesse volume, Zafón volta a mergulhar no universo literário idealizado em A sombra do vento, pelo ponto de vista de um escritor. Os ímpetos de inspiração, a ressaca criativa, as dificuldades para ser publicado, o uso de pseudônimos ou o trabalho de ghost writer, todos os problemas profissionais enfrentados por David se mesclam às suas desventuras pessoais.
O Cemitério dos Livros Esquecidos, o impressionante e mágico local onde são guardadas todas as obras já escritas, é reapresentado pelo livreiro Sempere, avô do protagonista do livro seguinte, entrelaçando os dois enredos. Sempere tem papel fundamental na formação e na vida de David, em uma relação de amizade e afeto. Um trunfo do autor, aliás, é a forma com que ele constrói o caráter dos personagens e transmite seus sentimentos.
Em meio aos reveses, o livro adentra a temática religiosa. De modo racional e desapaixonado, Zafón apresenta as linhas gerais das religiões e suas premissas, mostrando como todas possuem bases narrativas, figuras mitológicas e lógicas semelhantes. Ele explica o surgimento de crenças, regras e proibições e a forma com que as doutrinas se tornam instrumentos de submissão e controle político, culminando em guerras e revoluções. É digna de aplausos a facilidade com que o autor faz um verdadeiro tratado sobre o assunto por meio das preleções de Corelli e das observações sarcásticas de David, que lembram as infindáveis discussões entre Hans e Settembrini em A Montanha Mágica.
Nessa saga sobre amor e desilusão, permeado de referências bíblicas, revelações chocantes e com um final dramático, os personagens se afogam em culpa e arrependimento, aguardando uma absolvição que provavelmente nunca virá. Como em A Sombra do Vento, e tão apaixonante e memorável quanto, vida e ficção se misturam até que não possamos distingui-las, enquanto a morte caminha ao lado, pajem sombrio da existência.
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