Alexandre Kovacs / Mundo de K 30/08/2020
Zélia Gattai - A Casa do Rio Vermelho
Editora Companhia das Letras - 344 Páginas - Imagem de capa: Xilogravura de Calasans Neto - Lançamento desta Edição: 2010 (Lançamento Original:1999).
Talvez a menos feminista das grandes escritoras brasileiras, Zélia Gattai (1916-2008) será eternamente lembrada como o grande amor da vida de Jorge Amado (1912-2001), com quem conviveu durante cinquenta e seis anos. Sua primeira e mais conhecida obra é Anarquistas, graças a Deus que começou a escrever aos 63 anos, dando início a um estilo memorialista que não abandonou mais, totalizando nove livros de memórias, entre eles A Casa do Rio Vermelho, lançado originalmente em 1999, que tem como início a decisão do casal de se mudar do Rio de Janeiro para a Bahia nos anos 1960.
Em Salvador, bairro do Rio Vermelho, Rua Alagoinhas número 33, Zélia Gattai e Jorge Amado compraram uma casa, situada no topo de uma ladeira, que se transformou em um ponto de encontro de intelectuais, escritores, artistas e as mais diversas celebridades nacionais e internacionais, ganhando status de museu e visitação pública, assim como outras famosas ex-residências de escritores e artistas, por exemplo: A Casa Azul onde viveram Frida Kahlo e Diego Rivera na Cidade do México, La Sebastiana em Valparaíso no Chile, onde morou o poeta Pablo Neruda ou ainda a Casapueblo, uma verdadeira obra de arte, construída pelo pintor e escultor uruguaio Carlos Páez Vilaró.
A deliciosa prosa de Zélia Gattai não obedece o rigor cronológico ("Peço licença para interromper o que dizia e contar a história...") e vai seguindo ao sabor das próprias lembranças, deixando o leitor conhecer os detalhes das inúmeras viagens e encontros do casal com os amigos Carybé, Glauber Rocha, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez e muitos outros. Casos curiosos, eventos familiares e fatos históricos se alternam no cotidiano de Zélia Gattai e Jorge Amado, um livro muito importante para a cultura brasileira e que mostra o devido reconhecimento a dois dos maiores nomes da nossa literatura.
"Decidimos nos mudar para a Bahia quando João Jorge completou treze anos. Nosso filho tornava-se um homenzinho, Paloma também crescia e o ambiente no Rio de Janeiro, sobretudo em Copacabana, nos assustava. Queríamos que nossos filhos vivessem em cidade mais tranquila, livres das tentações das drogas que andavam na berlinda, da maconha ameaçando os escolares, oferecida à saída das aulas. // Salvador era, na época, uma cidade pacata, não chegava a quinhentos mil habitantes. Lá os meninos poderiam andar soltos, nós poderíamos dormir tranquilos. // Tirar as crianças do Rio de Janeiro era assunto decidido, assunto prioritário. Existia, no entanto, ainda um motivo para essa mudança radical de vida: havia muito que Jorge sonhava voltar a viver em Salvador, comprar uma casa na Bahia. // Atendendo ao desejo do pai, aos dezoito anos ele partira para o Rio de Janeiro com o propósito de só voltar com o canudo de bacharel em direito embaixo do braço. O coronel João Amado desejava, como era comum entre os fazendeiros da época, ter um filho advogado, um filho doutor, sobretudo o primogênito. Jorge não iria desapontar o pai. Atendeu, pois, ao seu pedido e em 1930 viajou para o Rio: não apenas faria a vontade do velho como iria lutar para realizar um sonho que alimentava desde menino: escrever um romance. Sonhava com isso desde os tempos de colégio, quando, certa vez, na sala de aula, um professor de português, padre Cabral, ao ler o trabalho de um aluno, na classe, previra a vocação do discípulo: '... o autor desta redação será um dia um grande escritor', profetizara. O autor da composição que impressionara de tal forma o professor outro não era senão o menino Jorge Amado, o mais vivo e traquinas da classe. // Aos catorze anos, Jorge Amado já colaborava em revistas e jornais e sonhava: 'quem sabe um dia não chegarei a escrever um romance?'. A oportunidade chegara, talvez numa grande capital ele teria novos conhecimentos, mais chances de realizar seu desejo." - DECISÃO TOMADA (p. 10)