spoiler visualizarbruna.nosferatu 30/09/2022
Memória - "O pessoal é o mais criativo"
Pelas resenhas que li por aqui, parece que o livro dividiu opiniões e estou surpresa pela maioria não ter gostado, pela história não corresponder a o que esperavam. Bom, eu faço parte dos que amaram. Tenho muito o que falar sobre e, obviamente, não conseguirei escrever aqui tudo o que essa leitura me fez pensar. Há muito tempo não lia um livro tão rápido, levei pouco mais de um mês, é uma leitura fluída e fui fazendo algumas pesquisas no decorrer dos dias. Gostaria de poder estruturar esse texto melhor, mas isso aqui não é redação do enem, vou só desembuchar uma pequena fração do que ficou na minha cabeça.
Brideshead Revisited é uma obra literária fictícia mas que traz muita realidade. A princípio parece muito pessoal e distante, por se tratar das memórias da juventude de um oficial inglês que remontam as primeiras décadas no século XX, no ambiente e o cotidiano aristocrático que cairia em declínio no período entre guerras, até seu dissolvimento quase que total nas décadas seguintes. Acredito que o que torna a narrativa universal é a complexidade transbordada na aparente simplicidade na escrita do autor Evelyn Waugh. Charles é um protagonista e narrador essencialmente neutro, é como se suas palavras apenas fossem a janela para uma realidade. Isso abre espaço para nossa própria percepção pessoal dos fatos que ocorrem. No livro, não ocorrem acontecimentos grandiosos, é sobre pessoas, famílias, o cotidiano de uma classe em uma época, os comportamentos e os temas que ali se desenvolvem. Às vezes, o pessoal é o mais criativo e envolvente.
Existem trechos e diálogos que realmente me comoveram, me colocaram para pensar e refletir sobre o que é estar nesse mundo, algumas cenas são muito lindas e mais bem detalhadas. A religião é um dos assuntos mais abordados na história, a todo momento os personagens estão entre a cruz e a espada, sufocados pela lei celestial que interfere na lei social. Gostei muito da forma como a narrativa apenas sugere a homossexualidade ou bissexualidade de Sebastian e Charles, é como se não fosse preciso dizer com todas as palavras, pois o texto tem estratégias mais criativas para nos levar a acreditar que é um fato. Por exemplo, acredito que grande parte do sofrimento de Sebastian vem dessa opressão e incompreensão, ele era visto como diferente e é claro que aquela conversinha e insistência da Lady Marchmain em querer levar o rapaz pra um monastério, tudo pra tentar ?curá-lo?. Senti que o tempo inteiro o autor queria dizer que Sebastian não tinha espaço para ser quem ele era e então, como consequência, se alojou no álcool.
Todos os personagens são muito bem construídos e inquietantes, simplesmente adorei a forma como cada um foi explorado e poderia escrever detalhadamente sobre cada um por linhas e mais linhas, mas falarei apenas minha percepção principal dos principais. Sebastian é encantador, cativante e o maior inimigo de si mesmo, fruto de sua relação problemática com a mãe. Julia, por vezes descrita como a versão feminina de Sebastian, é mais forte, contestadora e inconformável que ele ao longo da narrativa, apesar de seu final conformista. Brideshead é pacato, religioso, disciplinado, um personagem inicialmente entediante, que se molda em uma figura cômica indispensável em seu caráter recluso. Cordélia, uma criança meio enfadonha e travessa, mas doce, longe de ser considerada fisicamente bela, é lapidada pela vida nos hospitais de campanha, o que desenvolveu ainda mais sua compaixão e bondade, sua beleza está no jeito puro e sua compaixão, seu jeito de ser. Anthony Blanche, com certeza um dos mais queridos, um alívio cômico extremamente bem escrito e cativante, com o humor baseado no sarcasmo. Lady Marchmain, a típica matriarca com personalidade controladora disfarçada de boa samaritana devota. Lord Marchmain seu completo oposto, um homem que deve ter vivido muito. Enfim, o que penso de Charles: vejo-o como um burguês médio aventureiro nesse mundo de uma família de nobres, os Flyte.
Em resumo, gostando ou não dos personagens, eles conseguem provocar algo, é como se lembrassem algo ou alguém, é bastante relacionável com o que temos na sociedade hoje, apesar de escrito em um período aparentemente distante. A escrita transmite muita melancolia e nostalgia, acho que ?perda? é a palavra que define. O livro consegue mesclar momentos de conforto e extrema leveza nas épocas felizes do narrador, ao passo que nos capítulos de declínio daquele estilo de vida são abordados tópicos bastante reflexivos e inquietantes. Charles relembra com uma doce melancolia um tempo não volta mais e muito do que é relembrado pode não ter sido um completo mar de rosas, pela mente humana preencher com suposições positivas as lacunas da memória. Enfim, acredito que todo mundo já relembrou sua própria época mais feliz da vida como se todo dia fosse verão e os pássaros cantassem e se lamentou pela simples lembrança ser o mais próximo que irá se aproximar daquela vivência outra vez.