Eduardo 17/04/2020
"Sim, ele me amava com maldade"
Há gênios que não apreciam todas as suas obras. Assim foi com Leonardo da Vinci e assim foi com Dostoiévski, este último chegando ao ponto de admitir que não havia gostado de O Eterno Marido, opinião não compartilhada por grande parte de seus leitores e especialmente pela crítica. Fico do lado da crítica desta vez. Como é possível não gostar desta pequena e peculiar obra-prima?
Este livro traz Dostoiévski bem ao estilo do já escrito, na época, Crime e Castigo, porém com uma psicologia, em certo ponto, mais tragicômica. Todo esse aspecto caricato é permeado também por um suspense incômodo, que não admite que o leitor tome a frente e pense por si só. Aliás, convém voltar a este ponto alguns parágrafos adiante, depois de exposto um pequeno conjunto dos acontecimentos principais.
Veltchanínov é um solteirão já encaminhando aos seus anos finais, residente de São Petersburgo, rico e bem relacionado com a classe nobre. Traz em sua bagagem uma personalidade arrogante, estúpida e de completo desprezo por aqueles que diferem de si por suas condições financeiras ou posições sociais. Além disso, até pouco tempo se gabava de suas relações com mulheres casadas, algo que, além do prazer do ato em si, lhe rendia a troça para com os devidos cornos das relações, com os quais, em algumas ocasiões, mantinha até mesmo uma espécie de amizade.
Todavia, algo começa a incomodar Veltchanínov: uma tal "coceira mental", provinda talvez de uma certa crise de consciência ao analisar suas ações no passado. Vem com ela uma crônica irritação, que o faz se tornar insuportável até para si. Muito provavelmente tal incômodo tenha se originado a partir das visões repetitivas nas ruas de São Petersburgo de uma certa figura, cujo chapéu era adornado com uma fita de luto, que ele parecia conhecer, e que talvez o estivesse perseguindo.
Diante de suas reviravoltas conscienciais, bate à sua porta, de madrugada, o tal sujeito que o havia encabulado, o que, obviamente, lhe causa estranheza. No entanto, imediatamente os dois começam a conversar e acabam por se reconhecerem depois de nove anos sem se verem. Ora, se não é Pável Pávlovitch, antigo amigo seu, casado com Natália, com quem teve um caso?
A partir daí é que Veltchanínov começa tanto a se coçar que, muito em breve, a coceira vira ferida. Conversa vai, conversa vem, ele acaba por descobrir o motivo da fita de luto no chapéu do sujeito: Natália está morta. Aparentemente, o que Pável desejava era apenas reencontrar o amigo que podia lhe servir um ombro, visto que, pela tendência do viúvo à embriaguez, a morte da esposa havia o afetado sobremaneira. Mas Veltchanínov não se convence dessa motivação.
Em meio a dias de conversa, algo começa ainda mais a assustar o antigo amante: teria Pável descoberto a traição da esposa? Teria ele sabido do caso? Caso sim, por que toda aquela amabilidade? Estaria ele planejando alguma vingança? Ora pensava que sim, ora pensava ser exagero. Não era Pável um "eterno marido", a quem Veltchanínov reservava apenas sua troça e desprezo? Esse tipo nunca fica a par de nada, fica?
Como se não bastante o inusitado da situação, Pável havia trazido consigo Liza, uma linda e assustada menina de oito anos, que, aparentemente, parecia sofrer nas mãos do pai (se é que, de fato, Pável era seu pai). Quando Veltchanínov a descobre ao visitar os aposentos do retornado amigo, faz suas contas e começa a cogitar a possibilidade de Liza ser sua filha. Se Pável procurava por vingança, que parte a menina teria nisso?
Basicamente, esse é o enredo que levará aos notórios comportamentos dos personagens. Repito: notórios. Notórios porque não seriam nada comuns se a história fosse contada por qualquer outro autor que não fosse Dostoiévski. De fato, não são comuns, mas "tornam-se" comuns à medida que o autor conduz o leitor. E aqui volto ao assunto mencionado no início deste texto: Dostoiévski não deixa o leitor tomar a frente, ele não permite que se crie hipóteses acerca de como seus personagens irão se comportar. Ele é quem impetra as nuances psicológicas de seus personagens no leitor, e tudo isso é feito de forma completamente sutil, gradual, sem que haja qualquer tipo de insight. De repente, são estranhos os comportamentos dos personagens; de repente, são completamente justificáveis. Quando e de que maneira isso acontece, só Deus sabe. Não à toa é ele um influenciador de Freud.
Provas desses comportamentos peculiares de O Eterno Marido não faltam: Veltchanínov deixa que Pável Pávlovitch durma em sua casa, mesmo temendo a possível vingança; ambos tecem elogios um a outro em dado momento, e em outro estão às farpas; às vezes parecem estar à vontade um com o outro, como se um soubesse do que o outro sabe sem que precisassem expor tais pensamentos, e como se toda a situação já estivesse resolvida sem sequer necessidade de diálogo; às vezes seus diálogos são completamente entremeados de dissimulações, expressões implícitas, como se cada um quisesse captar o que o outro sabe sem o fazer diretamente.
Aliás, falando em diálogos, talvez esse seja o ponto mais notável desta obra. Os dois se amam e se odeiam de uma forma completamente anormal, mas ao mesmo tempo compreensível. Ainda que narrado em terceira pessoa, o livro parece também narrado em primeira, por mais que isso soe estranho. A mesma quantidade de consonância é a mesma de antagonismo. Tudo é feito por meio de palavras, gestos e comportamentos subentendidos, em dado momento com aspecto cômico, em dado momento com certo toque de suspense e receio. Tudo isso é caracterizado, acima de tudo, repito, pelos diálogos, a grande obra-prima dentro dessa obra-prima, a aranha que tece os fios desse livro. Por isso é de extrema importância o papel da tradução, e Rubens Figueiredo, nessa edição, soube fazê-la com maestria.
O eterno marido, como prefigura Dostoiévski através dos pensamentos de Veltchanínov, é aquele cujo papel é de mero ornamento social, aquele que nasce para levar chifres. Sua função na sociedade é apenas cumprir sua posição de homem, deixando que sua companheira cumpra, sob certo véu um tanto quanto transparente, sua posição contraventora, em conjunto com o eterno amante, que é eterno geralmente em seu papel, mas quase nunca para com sua cúmplice.
A grande essência de O Eterno Marido está na dubiedade dos protagonistas, no receio, na falsa ou não amabilidade, e, mais do que tudo, na construção de qualquer que seja a justificativa para qualquer comportamento, cuja absorção é inevitável ao leitor, como acontece em Crime e Castigo, por exemplo. Mesmo perambulando pelos subentendidos, a mensagem de Dostoiévski acaba ficando clara com o desfecho da obra. Algo que ainda fica mais claro é a curiosa relação amistosa dos dois, tanto quanto a intrigante permissibilidade de um para com o outro, ainda que haja certa periculosidade nessa aproximação. Basta vasculhar a consciência de Veltchanínov e você encontrará tudo lá, encoberto por algumas linhas, descoberto por outras. Mas isso leva tempo. Antes a história precisa ser devidamente mastigada, regurgitada e novamente mastigada por alguns dias.
"O monstro mais monstruoso é um monstro com sentimentos nobres; eu sei disso por experiência própria, Pável Pávlovitch! Para o monstro, a natureza não é mãe carinhosa, mas sim madrasta. A natureza cria monstros, mas não para ter pena, e sim para dar cabo deles... e com razão. Hoje em dia, abraços e lágrimas de perdão não saem barato nem para pessoas decentes, quanto mais para gente como eu e você, Pável Pávlovitch!"
"(...) Mas será que ele me amava ontem, quando ficou falando de amor e me disse: 'vamos acertar as contas'? Sim, ele me amava com maldade, e esse é o amor mais forte..."