Raul113 28/11/2020
Bom lá vai...
De todas as histórias e livros lidos ao longo deste ano, sem sombras de dúvidas posso dizer que a leitura do Martelo das Feiticeiras foi a que mais me espantou e impactou, não apenas pelo seu conteúdo, porém acima disso, pelo fato de conhecermos tão pouco de nossa própria história. Ao longo dos nossos estudo escolares pincelamos várias vezes a Idade Média, algumas vezes nas aulas de História outas nas de Literatura. Porém, depois da leitura desse indigesto documento histórico, acredito que nunca estudamos o quão perturbadora essa época realmente foi para a humanidade, sobretudo para as mulheres.
O Martelo das Feiticeiras, traduzido de Malleus Maleficarum em latim, é nada mais nada menos que o grande manual, não oficial, de tortura empregado pela Igreja Católica para a caça as bruxas durante a Era Medieval. Escrito por Heinrich Kramer e James Sprenger altos inquisidores da Igreja em regiões da Alemanha a época, o livro foi um dos responsáveis por grande parte da onda de histeria que dominou a população da Europa entre os séculos XV e XVI, bem como o causador da morte de milhões de mulheres, judeus, homossexuais, negros e quaisquer pessoas que discordassem da ideologia Católica nas fogueiras medievais.
No entanto, mais que isto, o livro é a prova histórica do papel da própria Igreja Católica, na deturpação dos ensinamentos cristãos e de um feroz processo de Condicionamento Feminino aos moldes da Sociedade Patriarcal e machista que surgiria nos séculos seguintes a Idade Média. Após a leitura, está mais do que claro que as mulheres não eram queimadas na fogueira por serem bruxas, mas sim por não serem subservientes aos ensinamentos e dogmas patriarcais impostos e disseminados pela Igreja Católica em sua determinação de se manter no poder ante aos questionamentos sociais que surgiam sobre sua Autoridade Divina.
Entretanto, é válido mencionar que a questão não se resume apenas ao fato da manutenção de poderes do período, ela é muito mais profunda, mexendo não apenas com questões sociais e históricas, mas também com questões psicológicas e culturais que estão enraizadas na sociedade mundial até os dias de hoje. Questões que dão margem a maioria dos problemas sociais relacionados a questões de preconceito de gênero e ao próprio feminicídio que enfrentamos hoje, mas que têm sua origem aqui, na escritura de um dos mais hediondos livros já escritos na história.
Os inquisidores, apesar de fazerem parte desse processo de luta pela manutenção de poderes, não tinham consciência real dos seus atos, acreditavam realmente que estavam fazendo o que fizeram em nome da salvação das almas daqueles que segundo a Igreja haviam sido tocados pelo demônio. Isso, é claro, não os exime de culpa, mas nos dá uma perspectiva de como a Igreja manipulava os seus próprios fiéis, sacerdotes e a população em geral, ao ponto de causar uma cegueira coletiva em nome de Deus e matar milhões em nome da salvação de suas almas. Justificando esses atos criminosos com passagens fragmentadas da bíblia e interpretações errôneas dos textos de filósofos cristãos e santos católicos.
Nesse livro, encontramos mais uma vez uma mensagem gritante sobre o perigo de se conhecer e estar imerso em apenas uma versão do discurso, provando mais uma vez que quando não observamos todos os ângulos e nos dispomos a conhecer versões além daquelas que julgamos ser as corretas, tendemos a ficar cegos ante as possibilidades e não apenas isso, a defender ideais deturpados por aqueles que defendem apenas os próprios interesses. Um único ponto de vista, um único discurso, não gera conhecimento, não gera avanço e não soluciona problemas. Contudo, por mais que saibamos disso parece que cada dia mais pegamos todo o conhecimento e experiencias históricas e jogamos pela janela, pois o mais aterrador é que a história se repete sempre.
Tracemos um panorama: aconteceu com Cristo, que foi crucificado por as ideias que defendia irem de encontro a filosofia dos que estavam no poder, que por sua vez alienaram a população ao ponto de ela preferir a soltura de um assassino a de um homem que ao longo da vida não fez mal a ninguém. Aconteceu com as mulheres, queimadas na fogueira por questionarem a autoridade dos homens que estavam no poder e se mostrarem independentes dos mesmos na busca por seus direitos mais básicos, diante de uma sociedade patriarcal autoritária que temia o poder feminino e usava de uma manipulação intencional do discurso de Cristo para matar e justificar a matança. Aconteceu com os Judeus, durante o holocausto mortos nas câmaras de gás nos Campos de Concentração nazistas, em nome de uma filosofia sem nexo pregada por um homem que sofria de um enorme complexo de inferioridade e que para se autoafirmar usava de seu autoritarismo para mostrar poder sobre os que considerava inferiores. E acontece hoje, mesmo após todas as lutas históricas e provas incontestáveis, vivemos numa sociedade assombrada pelo fantasma do Autoritarismo Medieval, que recicla o mesmo discurso para justificar seus atos atrozes contra aqueles que discordam ou vão de encontro ao sistema imposto por quem está no topo da cadeia alimentar.
Entrementes, o espantoso hoje, não é a grande capacidade que o ser humano tem para maldade, mas o fato de que, mais de cinco séculos após a sua publicação, muitos ainda repetem o mesmo discurso, exatamente com as mesmas palavras, que Kramer e Sprenger escreveram no seu manual de tortura. Mais de quinhentos anos depois, em plena era tecnológica ainda vemos mulheres serem discriminadas por serem mulheres, por sua escolha de profissão, por buscarem uma carreira profissional e não familiar e vice-versa.
Mas felizmente, hoje o panorama é bem mais promissor, as bruxas de ontem mortas na fogueira não foram silenciadas, o som de suas vozes ecoa através da história. Sua mensagem, ao contrário do que pensavam os inquisidores, sobreviveu e foi acolhida. Hoje as mulheres não apenas lutam por seu espaço, mas têm consciência da importância disso, reconquistaram direitos que lhes foram roubados e finalmente estão começando a quebrar o processo de condicionamento feminino iniciado muito antes da era medieval.
No entanto, também é preciso deixar claro que o texto não é para qualquer um, seus autores não pouparam esforços em descrever nos mínimos detalhes as torturas pelas quais as mulheres passavam (ou deveriam passar, já que falamos aqui de um manual de instruções), na tentativa de fazê-las confessar serem bruxas hereges consagradas ao demônio. Porém, é justamente por esse motivo, apesar de ser um livro diabólico, ele é ao mesmo tempo extremamente importante, pois mantém viva a memória de todas as mulheres que ao longo da história deram suas vidas por essa luta.
Diante de tudo isso, mesmo que ainda lhes falte muito a ser conquistado, o caminho aberto as custas do sangue de tantas mulheres ao longo da história, nunca foi tão certo. E toda violência gratuita contra as mulheres que ainda é perpetrada hoje, é só mais uma prova de que a histeria medieval ainda está entre nós e não reside no fato da busca feminina por sua independência, mas sim no medo que a sociedade patriarcal tem de perder o seu poder.
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