LucasMiguel 31/10/2024
O finado Mattia Pascal
Quais são os componentes da ficção? De que é feito o véu da realidade ficcional e até que ponto ela deve ser idêntica ao Real? A fantasia deve ser uma mera extensão da realidade, ou deve se apresentar despida desta intenção, apresentando-se declaradamente como mero artifício?
Desde a antiguidade, discute-se a natureza e a finalidade da arte. É famoso o desprezo de Platão pela representação artística que, para ele, seria mera cópia do mundo sensível, sendo este, uma cópia imperfeita do mundo das ideias. A arte seria, então, uma mera cópia de uma cópia.
Este conceito foi repelido por Aristóteles que entedia a arte como ‘mimese’, ou seja, a representação artística não é mera cópia do Real, mas uma recriação da vida como possibilidade lógica. Recria-se a realidade não como de fato é, mas como poderia ser, reestruturando-a por meio de realidades possíveis dentro de uma lógica interna, sem compromisso com a realidade crua. Por isso, recriamos realidades em que pessoas voam ou possuem superpoderes sem que isso nos cause desconforto, visto que o que comanda a ficção não é a realidade, mas a verossimilhança.
Quase incontestavelmente vencedor deste embate, Aristóteles se mostrou fervoroso defensor da arte como cura, como reconhecimento e como alteridade. Por meio da catarse, o espectador ou o leitor sente a angústia de um naufrágio ou a dor de um esfomeado sem os riscos de uma viagem marítima, e sem que sejamos devorados pela fome real. A ficção existe porque a vida é pequena demais, e nela não cabem todas as possibilidades humanas.
Pois bem: Luigi Pirandello é um autor que sempre trata, em maior ou menor grau, da identidade humana, da subjetividade; busca alcançar o âmago do homem para além das máscaras sociais, uma vez que estas são meras personas, projeções engenhosas criadas sobre nós mesmos para nos apresentamos ao teatro do mundo, e para isso, baseia sua ficção em um questionamento circular: o que é ficção?
Em “o finado Mattia Pascal”, o personagem de Pirandello é uma espécie de Brás Cubas italiano que narra sua vida revelando ser ela um tanto quanto insossa. Uma existência sem aventuras, muito pouco autoral, visto que ele se deixa levar pelas contingências que se vão apresentando.
Ocorre que, no ápice do desespero e da falta de dinheiro, resolve fugir para se arriscar nas roletas de Montecarlo, obtendo incrível sucesso financeiro (nada mais irreal e artificioso que isso), e resolve retornar a sua cidade com a pequena fortuna conquistada.
No caminho de volta, lê em um jornal uma notícia insólita: Mattia Pascal havia sido encontrado morto!
Como havia passado muitos dias longe de casa, e tendo havido a coincidência conveniente de encontrarem um cadáver em um rio em franco estágio de decomposição próximo a sua residência, a conclusão da polícia não poderia ser outra: Mattia Pascal havia se suicidado em razão de dificuldades financeiras.
Após o choque da notícia, o êxtase da liberdade. Estando morto, não haveria de prestar contas à esposa, à sogra, aos credores, à realidade. Mattia Pascal, embora repleto de vitalidade, estava livre da vida.
Para nutrir sua nova realidade, agora limpa de passado, seria preciso inventar um novo ser, um novo sujeito para preencher aquele corpo que, socialmente, jazia morto em uma cova sob o nome que haviam lhe atribuído ao nascer. Seria necessário ficcionalizar sua nova vida usando os artifícios de um autor que escreve um personagem. Este, por sua vez, deveria parecer, aos entes da realidade, provável, factual e longe da artificialidade e da fraude. Pascal assume a pena de Pirandello e faz a obra deste dobrar-se sobre si mesma.
Após criar um novo ente chamado Adriano Meis, atentando-se aos detalhes de seu passado, sua origem e seus segredos inventados, o falecido Mattia Pascal, no entanto, percebe que a liberdade é um animal irracional difícil de ser domado, e que nunca se pode fugir da imanência da vida, como nos ensinava Espinoza: para onde quer que fujamos, haveremos, inexoravelmente, de encontrar a vida, e nossa personalidade, formada desde a infância, nos obriga, como um tirano, a repetir os erros, os dogmas, as fantasias...por isso, frente a este reconhecimento, o personagem decide matar o fictício Adriano para tentar fazer renascer Mattia e continuar sua existência até a inevitável morte.
Ao final, nosso herói morre três vezes, duas de forma ficcional, e uma real. No entanto, sendo ele mero personagem de Luigi Pirandello, o real também é ficcional. Nós, entes reais, quando morremos e caímos definitivamente no esquecimento, passamos a ser algo como uma mera ficção. Arte e vida, muito pouco há de uma sem a outra.