3.0.3 18/10/2024
A plasticidade móvel da escrita
“[…] eu que me soube sempre parda e pesada como a pele da terra, são mistérios, ganchos talvez de uma vida de antes, há cadeias e argolas que se enroscam tanto que os dedos do divino nem podem desfazê-las, há poderosos peixes que se matam nas redes, pois não é? Por que se desmancharia a cadeia de carne dos humanos, somos de tantas vidas que algum resíduo antigo se cola à nossa futura alma e é talvez por isso que me faz pena e maravilha esse encorpado mole, desfazido, essa cor sem nome desse corpo da água.”
É necessário lembrar aos estudiosos que, ao debater literatura, sempre é preciso estar disposto a correr riscos na busca pelo conhecimento, a fim de apreciar plenamente os princípios que definem a natureza independente da compreensão literária. Nesse sentido, penso que é fundamental reconhecer uma abordagem particular de interpretação literária que não pretenda ser um método definitivo ou uma fonte fiável de informação que atribua proficiência artística às criações produzidas sob esse nome.
Brilhante autora brasileira, Hilda Hilst (1930-2004) não foi apenas poeta, mas também cronista, dramaturga e escritora de ficção. Seu repertório literário investiga assuntos instigantes, incluindo misticismo, erotismo, emancipação da sexualidade feminina e insanidade. Especialistas na área consideram-na uma das escritoras mais importantes da língua portuguesa do século XX. Em Tu não te moves de ti (1980), Hilda Hilst investiga o existencialismo por meio de três narrativas distintas. Sedutora e complexa, a obra emprega uma linguagem fragmentada, criando três histórias separadas, mas interligadas, todas unidas por um fio comum.
Em “Tadeu (da Razão)”, apresenta-se uma narrativa que explora o embate entre o personagem principal, Tadeu, um executivo desiludido que deseja uma dimensão metafísica mais profunda para além dos limites do seu trabalho quotidiano, e a sua esposa Ruth, cujas ambições são exclusivamente focadas nas recompensas materiais do mundo corporativo. O ritmo do capítulo acentua os contrastes entre esses dois indivíduos, com o mundo interior de Tadeu ganhando riqueza e complexidade à medida que percebe o riso despreocupado de uma mulher em um bar, uma justaposição gritante à artificialidade e superficialidade de Ruth. Além disso, os delírios de Tadeu são cada vez mais povoados por encontros com uma misteriosa casa habitada por figuras sombrias, aprofundando ainda mais sua turbulência. Em contraste, Ruth, com a sua obsessão pelos negócios e pelo capitalismo, é retratada como uma figura insignificante.
Em “Matamoros (da fantasia)”, perde-se o eco de Rute. Aqui, a realidade se confunde com a poesia de eras passadas, desde os épicos bíblicos até as narrativas de amores rústicos que, embora tingidos de classicismo, exalam sensualidade. Maria Matamoros habita esse éden, entregue ao êxtase ao lado de Meu, a personificação da perfeição masculina que surge para tornar-se seu esposo. Mas a harmonia é abalada quando a semente da desconfiança brota em seu coração: seria a sua própria mãe a causadora de sua traição? Desse ponto em diante, um drama afetivo se instaura, tingindo de tragédia o que antes era um refúgio de desejos. Revela-se, então, que a poesia não é o santuário da felicidade, mas o palco do terror e da compaixão, onde se desenrola o drama humano sob o peso da provação judaico-cristã.
Em “Axelrod (da proporção)”, somos apresentados a um professor de história política que, até então, seguia uma linha ortodoxa de pensamento. Em uma viagem de trem rumo à casa de seus pais, ele é assaltado por profundas reflexões. Seja em direção ao futuro ou de volta à infância, o movimento do trem funciona como metáfora para o fluxo da vida. No banheiro, enquanto urina, Axelrod pensa como as questões mais íntimas e privadas da existência humana ainda permanecem sem respostas, mesmo diante de ideais revolucionários. À medida que se aproxima do lar e das suas origens, o professor se distancia cada vez mais das doutrinas ortodoxas que guiavam o seu entendimento de história política. Essa viagem o leva a um estado de introspecção, onde se move menos em relação ao mundo exterior e se aprofunda mais em seu interior. Aqui, a poesia não oferece descanso, e o trem da história não encontra base sólida para a esperança. O capítulo, que inicialmente parecia tratar da resolução dos dilemas do capitalismo por meio do prazer encontrado na poesia, culmina em uma dolorosa situação insolúvel, sem saída. No final das contas, o que prevalece é a pressão incômoda da urina no confinamento do banheiro, analogia à própria poesia que, embora bela, carrega consigo o peso do desejo agônico e profundamente pessoal.
“E quem fotografasse a tarde de Tadeu, e eu mesmo colocado na paisagem, no parapeito de pedra, os cotovelos cravados, esse alguém nos diria que há apenas um homem debruçado olhando um mangueiral e uma planura, que se percebe sim que é um cair da tarde, que possíveis rolas ou codornas, talvez duas… que há dois homens e uma mulher, não, agora duas, e que… mais nada, nem eu fotógrafo pretendia uma fotografia rica e ajustada à crueza da vida, que para isso seria preciso cenário adequado, colisão de águas, revoada, luz-laranja da manhã incidindo nas asas, brilhos espaçados ao redor de um homem que sustenta nas mãos uma leve espingarda de muita precisão, o tiro se adentrando no corpo da ave, lagos, a beirada afogada de lírios, como naquela manhã, Rute, no noivado, o passeio de nós dois aos grandes lagos, a flor aquática verde-bojuda, te inclinaste e disseste uma das tuas santas banalidades, assim Tadeu qualificava àquele tempo as tuas frases, eras incapaz de descobrir nas coisas o vestígio do Intocado, dizias o disforme, o que não estava nas coisas, pensavas em usá-las, a flor aquática verde-bojuda depois de batizada pelas falanges de Rute e colocada aqui ali – que tal na cintura, olha Tadeu, presa a uma grande fivela.”
Em essência, Tu não te moves de ti representa a súmula literária da realidade objetiva da arte, onde a leitura revela elementos reais que exigem existir apenas através da compreensão autônoma. Obras assim perduram porque se ligam à verdade embutida na sua natureza artística. Muitos estudos dedicados à obra caem na armadilha de não reconhecer a obrigação do intelecto na busca pela potência da verdade. A natureza da obra busca com precisão esse axioma, desconsiderando quaisquer tentativas de reduzi-la a fatos que comprometam a sua integridade artística. Desse modo, Tu não te moves de ti desafia as expectativas do leitor ao resistir e exigir uma leitura única.
Para compreender a natureza de Tu não te moves de ti, é preciso mergulhar na profundidade da verdade e na expressão artística que a obra incorpora. O seu foco reside na mensagem transmitida por meio da linguagem, e não na sua criação ou recepção. Embora a presença da voz narrativa possa obscurecer esse fenômeno, criando uma ilusão de subjetividade poética, sob essa superfície reside uma voz mais lenta que revela a natureza artística da arte poética. A artisticidade da obra é, nesse sentido, uma potência oculta que varia em qualidade, refletindo o mundo, as emoções, as sensações e as profundezas da alma humana. Por meio da composição da linguagem da obra, desvelam-se instantes de realidade, espelhando outras experiências. O poder da verdade alinha-se com a externalização do “eu” protegido do artista, um “eu” que muitas vezes a sociedade exclui devido à sua singularidade. Ao testemunhar essa verdade inconciliável, liberta-se a força da expressão artística.
A característica mais marcante deste livro é o seu fluxo, que provoca uma confusão na leitura e desperta uma mistura de emoções que persiste mesmo ao reler o trecho pela segunda vez. Isso acontece porque a intensidade da vida, suas etapas e dilemas surgem nas páginas de maneira muito semelhante ao turbilhão de pensamentos que habitam nossa mente diariamente, entrelaçando-se, revisitando situações passadas e antecipando as futuras, agindo, desatando nós e descobrindo outros ainda mais complexos. É de se admirar profundamente a harmonia entre interioridade e linguagem, a habilidade singular de Hilda em traduzir os labirintos mentais e emocionais. Buscar materializar o indizível, abordar o que é velado e transcender a avassaladora carga dos desejos, de se movimentar e evoluir sem perder a própria essência – algo tão humanamente não humano, que raciocina e emociona.
Na obra, Hilda Hilst assume o papel de sujeito de estudo, explorando todos os aspectos da existência, exceto o seu próprio eu. O foco está em reunir a natureza do ser, colhendo apenas o que é universalmente compartilhado. O que torna este trabalho extraordinário é a sua capacidade de aprofundar os aspectos mais desafiantes e frágeis da nossa natureza. Hilda lança a sua linha de pesca nas profundezas instáveis do seu próprio ser, procurando pensamentos e emoções abstratas que possam ser intelectualmente abraçadas por todos e sentidas por aqueles que têm a capacidade única de simpatizar com os pensamentos e sentimentos mais íntimos das personagens.
Nessa toada, Tu não te moves de ti é principalmente um trabalho de criação artística, servindo tanto como exploração quanto como explicação da arte produzida anteriormente. Apresenta uma paisagem externa que ganha vida para valorizar o processo estético — ou talvez Hilda apenas finja esta perspectiva externa para concretizá-la em diferentes épocas. A totalidade do contexto é cuidadosamente considerada, incorporando todos os ângulos da existência e da experiência humana, extraindo a substância metafísica que habita a vida e os indivíduos.
A existência da obra está entretecida a uma espantosa melancolia, em que sua poética reflete um talento que inspira reflexões metafísicas e a continuidade de uma expressão artística que não compreende, nem pode compreender plenamente, o significado da existência sem que antes a experimente. Ou seja, assim como as expressões da existência podem não ter valor para quem vive, as obras não geram reflexões sobre a existência, mas sobre a própria natureza de uma realidade comum: é necessário, portanto, atribuir valor artístico à existência, pois ela se manifesta no instante em que se atinge uma vivência que transcende a existência entendida de maneira biológica: na plasticidade móvel da escrita.
“Vê-se mais nos olhos ou na boca mentira e verdade? Também as mãos às vezes têm movimentos tênues de revelação, um fechar-se rápido, delicado, côncavo guardando um minúsculo achado, e há gestos gratuitos quando se quer cobrir um espaço de tempo, passamos uma das mãos na cabeça, contornamos lentamente o desenho da sobrancelha, e há passos igualmente sem destino, um buscar impreciso, e amolecida fala desfazendo a ponte empedrada de muita ansiedade.”
Assim, compreende-se que uma escrita não tem como objetivo primário a comunicação. Ela se manifesta como uma poética que rejeita a ideia de um conteúdo que possa ser transmitido por meio da palavra. Seu gesto não se limita a ser uma figura ou uma imitação, nem serve como um simples recurso de confronto — está fundamentado na ideia figurada, expressa por meio de um sistema próprio. Dentro da dimensão artística de Tu não te moves de ti, a literatura se torna uma exigência importante, requerendo sua independência e alimentando a busca por uma constituição inovadora, que se opõe a todas as outras produções.
Como um momento que fica na memória, ainda que o passar do tempo ofusque os esforços de análise sobre seu invento, representa a atuação da linguagem que preserva a relação especial entre a palavra manifestada nos objetos e a palavra humana. A relação poética entre essas duas formas de linguagem não consolida uma como padrão ou correspondente, já que a palavra poética não se ocupa com indivíduos, mas com o gesto de nomear. Tais nomes funcionam como marcas de um compromisso único sobre uma existência inédita e de elevado padrão, marcada por um propósito atípico e sublime: a urdidura da obra. Nesse sentido, isso implica que as personagens oferecem uma representação imprópria da existência, mas que, mesmo assim, se oferecem inteiramente em escritas.
A linguagem em Tu não te moves de ti concatena sutilmente a natureza primitiva onde a marca da multiplicidade é registrada, alcançando o inalcançável e o inacessível da existência, envolvendo a singularidade que lhe é recusada com uma capa de mangas amplas. Trata-se aqui de algo não simbólico, mas exato, suficiente para transformar um evento sem significado — a existência das personagens — em licença de sua própria natureza: os seus nomes em movimento. Isso equivale a afirmar que a palavra se dissolve no teor artístico das experiências cotidianas, conferindo a elas o sentido literal de que frequentemente carecem; essa é a principal função da arte literária e o alicerce de sua singular independência.
Nesse ponto, Tu não te moves de ti torna-se um anúncio intelectual da modernidade do pensamento e da sensação, legitimando o conhecimento da obra como uma forma autônoma de saber, superando ideias simplistas, em benefício de uma vivência genuína que se funda em uma arte que provoca uma experiência desprovida da subjetividade e que proporciona o júbilo gratuito de expressar a beleza das vozes, sem se importar com qualquer abstração — seja ela explícita ou implícita. Em cada capítulo (ou conto), parece haver uma vivência inteiramente estética que é soberana e se distancia da percepção imediata de quem lê, criando, assim, uma independência necessária para o entendimento artístico: uma experimentação em outro grau.
Isso evidencia que o contexto da experiência é trocado por uma decisão nas palavras, que não transforma nem divindades nem humanos em matérias ou agentes da vivência. Entender a obra em questão não se resume a fundamentá-la; a apreensão que se busca exige um nível de interpretação que não se baseia em explicações, já que substituir o incógnito pelo familiar é uma forma de simplificação — e o que existe de mais valioso na obra se recusa a essa abordagem. Em Tu não te moves de ti, o corpo da linguagem transcende a ideia simplista de mapear os locais familiares em uma viagem isenta de riscos. A jornada, sob a perspectiva de Hilda Hilst, representa algo mais grandioso. O seu trabalho exige a capacidade de entender essa jornada e estar preparado para os desafios enfrentados ao se aventurar rumo à derradeira terra a ser explorada: nós mesmos. Somente desse modo poderemos apreciar a profundidade da obra e reconhecer a estima artística que a vida da poeta merece, assim como toda a narrativa do porvir que se desdobrou sob sua influência artística.
Hilda Hilst atingiu o ápice em Tu não te moves de ti ao conseguir lapidar o texto fragmentado com a intensidade das sentenças, resultando em uma escrita fluida e poderosa, carregada de força, emoção, questionamentos políticos e existencialismo. O texto é uma costura meticulosa de diversas emoções, que revela o que há de mais profundo em nosso interior. É como se fosse uma lanterna em um quarto escuro, lançando luz sobre os pedaços de espelho no chão e nos permitindo enxergar a nós mesmos em cada reflexo.
“Tu não te moves de ti, tu não te moves de ti, ainda que se mova o trem tu não te moves de ti, por favor, Haiága, fecha os meus escavados, sutura as grandes janelas que me fiz, o escuro explodindo no vermelho, a violência da víscera, o estufado grosso reprimido, minha cintilante precisão, fecha os meus meios mato-me a mim se me compreendo, vou até onde, pai, imóvel me movendo? Até uns claros confins? A um alagado de nojo? Alagado de nojo me esfuçalho, interiorizo o porco, sou um daqueles que correm em direção ao fundo, agrido-me como se fosse dono da verdade, como um cristão, como todos os cristãos que até hoje carregam o monopólio da luz como se o caminho fosse um, um só, Eu sou a Verdade, eu não o sou.”