Andreia Santana 04/07/2023
Ditaduras, jornalismo e a dificuldade de respirar
Pereira tem dificuldade para respirar. Na meia-idade, cardíaco e acima do peso, não são as muitas refeições de omeletes com ervas finas e limonadas açucaradas que dificultam a entrada de ar nos pulmões do veterano jornalista. A asfixia da qual padece o modesto editor de cultura é de outra natureza, mais simbólica e, ainda assim, palpável e densa, de chumbo.
Pereira precisa praticar a autocensura para continuar vivo. Falta-lhe ar porque ele prefere sufocar pensamentos ‘subversivos’ em pequenas obsessões religiosas, como a sua angústia em comprovar, ou não, que a 'ressurreição da carne' da qual falam os padres é uma realidade mais tangível do que a atmosfera opressiva em que ele vive.
Pereira não é cego, mas finge não ver que os jornais trazem, a cada dia, menos a verdade dos fatos que ele foi treinado para perseguir, e mais as versões oficiais da verdade.
Ambientado em Portugal, mais especificamente em Lisboa, nos anos 1930, durante a ditadura salazarista, Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi, conta a história de um homem que decide parar de fingir que não está vendo a barbárie e, assim, quem sabe, aprender a respirar melhor.
Viúvo, de hábitos simples e resignado à preparação da sua página semanal de necrológios para autores católicos e aprovados pelo regime, ele se envolve, inicialmente de forma involuntária e, aos poucos, conscientemente, na resistência à ditadura ao contratar um estagiário. O jovem Monteiro Rossi quer escrever sobre os autores malditos, aqueles que apontam o dedo na cara dos ditadores. Ele e sua namorada Marta, igualmente envolvida com a resistência, ajudam o velho Pereiro na sua tomada de consciência.
A história de Pereira é contada pelo fantasma do velho jornalista, que visita o autor e passa a ditar sua vida. A escrita poética e de frases contidas e curtas de Tabucchi envolve o leitor, que simpatiza com o jornalista, suas hesitações, os medos, os arroubos de coragem, a solidão que o faz conversar com o retrato da esposa morta de tuberculose na flor da idade.
Há um romantismo decadente e nostálgico na figura e na história de Pereira. Suas viagens de trem, a paisagem dos arredores de Lisboa, o ambiente dos cafés e os sussurros entreouvidos nas esquinas enternecem até o coração do leitor mais calejado e o transformam em cúmplice do protagonista e de seus jovens e rebeldes amigos, o frágil e desamparado Monteiro Rossi e a audaciosa e valente Marta.
Afirma Pereira é um pequeno sopro de esperança, a prova de que até as almas mais pacíficas têm um limite e que uma vez rompido esse limite, elas se rebelam, um singelo hino à liberdade que permanece muito atual tanto por trazer aspectos mais intimistas de época salazarista, quanto por ser tão necessário, nos dias que correm, manter viva a memória do horror de outrora, para que não volte a nos assombrar...
Filme e quadrinhos
Afirma Pereira foi publicado originalmente em 1994 e levado ao cinema em 1995, pelo diretor Roberto Faenza. O filme, que tem Marcello Mastroianni como protagonista e vivendo um dos seus últimos grandes papeis no cinema – o ator morreu no ano seguinte ao lançamento, 1996 -, é uma co-produção da Itália, França e Portugal. A trilha sonora do longa, pungente, emocionante e catártica, é do mestre Ennio Morricone.
No Brasil, a editora Nemo, pertencente ao Grupo Editorial Autêntica, lançou em 2022 a versão em graphic novel de Afirma Pereira, uma adaptação de Pierre-Henry Gomont para o romance de Antonio Tabucchi. A versão em quadrinhos foi lançada originalmente em 2016 e ganhou o Grande Prêmio RTL de Quadrinhos daquele ano.
O exemplar que eu li:
É uma publicação da Estação Liberdade e da TAG Experiências Literárias, enviada para os assinantes do clube Curadoria, em agosto de 2020. O livro é acompanhado de uma revista, em versão impressa e digital, capinha de proteção (luva) e marcador temático; e de conteúdos on-line complementares, como uma playlist muito boa, onde se destacam algumas canções de Chico Buarque e a trilha sonora do filme de 1995. Dá para ouvir no Deezer e Spotify. O projeto gráfico vibrante é de Bruno Miguell M. Mesquita, Gabriela Heberle, Kalany Ballardin e Paula Hentges. Já a indicação do livro foi da escritora indiana Jhumpa Lahiri, autora de O intérprete de males e O Xará, entre outros.
Ficha Técnica:
Afirma Pereira
Título original: Sostiene Pereira
Autor: Antonio Tabucchi
Tradução: Roberta Barni
Editora: Estação Liberdade/TAG Experiências Literárias
160 páginas
site: https://mardehistorias.wordpress.com/