Pandora 09/09/2023De Morte e Vida Severina eu tinha visto a adaptação para a TV, dirigida pelo Walter Avancini no início dos anos 80. Lembro que me impactou bastante, até hoje reverbera em meus ouvidos Funeral de um Lavrador, musicada por Chico Buarque a partir do poema: “é a parte que te cabe deste latifúndio, é a parte que querias ver dividida”.
No prefácio de Braulio Tavares aprendi que Morte e Vida Severina é a terceira parte de uma trilogia poética sobre o Rio Capibaribe [1], que nasce na Serra do Jacarará e percorre um longo caminho até encontrar-se com o Rio Beberibe e desaguar no mar. A primeira parte, que não está neste livro, é O cão sem plumas e a segunda, O Rio. Na primeira a voz é do poeta, na segunda do Rio e na terceira uma pluralidade de personagens que o retirante Severino vai encontrando em sua jornada às margens do Capibaribe.
O trabalho de João Cabral em O Rio é maravilhoso; não só ele percorre geograficamente o curso do Capibaribe, como vai nos contando a história dos povoados pelos quais vai passando. Por favor, assistam ao vídeo ‘Capibaribe em 360° - da nascente à foz”, de Eric Laurence, realizado por meio de captação de recursos da lei Aldir Blanc Pernambuco (link ao fim deste texto), de preferência, junto ao poema. É uma viagem incrível, dá vontade de ir a Pernambuco agora! Fiquei muito emocionada.
“Outra vez ouço o trem/ao me aproximar de Carpina./Vai passar na cidade, vai pela chã, lá por cima./Detém-se raramente,/pois que sempre está fugindo,/esquivando apressado/as coisas de seu caminho./Diversa da dos trens/é a viagem que fazem os rios:/convivem com as coisas/entre as quais vão fluindo;/demoram nos remansos/para descansar e dormir;/convivem com a gente/sem se apressar em fugir.” - pág. 28.
Já Morte e Vida Severina é pura constatação da vida e morte do povo nordestino do agreste, sofrido, cansado, mas esperançoso. Afinal, a vida se renova a cada nascimento.
“é difícil defender,/só com palavras, a vida,/ainda mais quando ela é/esta que vê, severina;/mas se responder não pude/à pergunta que fazia,/ela, a vida, a respondeu/com sua presença viva./E não há melhor resposta/que o espetáculo da vida:/vê-la desfiar seu fio,/que também se chama vida,/ver a fábrica que ela mesma,/teimosamente, se fabrica,/vê-la brotar como há pouco/em nova vida explodida;/mesmo quando é assim pequena/a explosão, como a ocorrida;/mesmo quando é uma explosão/como a de há pouco, franzina;/mesmo quando é a explosão/de uma vida severina.” - pág. 132/133.
Ah, gente, isso é lindo demais!
Também compõem esta edição o livro Paisagens com Figuras, com poesias sobre Pernambuco e Espanha, incluindo um poema para seu amigo, também poeta e artista plástico, Joan Brossa. E por fim o largo poema Uma Faca Só Lâmina, dedicado a Vinicius de Moraes e repleto de metáforas, bem diferente dos outros escritos, que me abstenho de comentar, pois minha compreensão não o alcançou.
Livro para os apreciadores de versos e para os não apreciadores também.
SOBRE O AUTOR:
João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife, em 1920 e passou parte da infância em cidades às margens do Capibaribe. Em 1942 foi com os pais para o Rio de Janeiro. Primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, foi, além de poeta, diplomata, tendo passado grande parte da vida na Espanha, o que influenciou bastante sua obra, bem como trabalhou em outros países da Europa, África e América Central. Chegou a ser acusado de subversão pelo Itamaraty e afastado junto a outros diplomatas, retornando após recorrer ao STF. Fez parte da ABL e da Academia Pernambucana de Letras e foi premiado diversas vezes, inclusive com o Camões. Parte da Terceira Geração Modernista do Brasil, a Geração de 45, ficou conhecido por fazer uma poesia dita cerebral, com bastante rigor estético, objetiva e comunicativa. Faleceu aos 79 anos, no Rio de Janeiro.
NOTAS:
[1] O Rio Capibaribe - rio das capivaras, em tupi - é um rio de grande extensão (270km), que percorre exclusivamente o estado de Pernambuco. Nasce na Serra do Jacarará, no agreste, na divisa dos municípios de Jataúba e Poção, e é em parte rio intermitente (desaparece em épocas de estiagem, ficando nove meses submerso), em parte perene (a partir do município de Limoeiro). Atravessa vários bairros e pontes de Recife até desaguar no Oceano Atlântico. Possui cerca de 74 afluentes e banha 42 municípios. Ao longo do Capibaribe, em razão do solo de massapé, surgiram os primeiros engenhos de cana-de-açúcar, posteriormente substituídos pelas usinas. A Petribu, por exemplo, está ali desde o século XVIII. Hoje o rio sofre com a degradação ambiental e está repleto de entulho, lixo e lama; mal se veem capivaras em suas margens. Mas há algumas ações pró rio: em Glória do Goitá, o SERTA, uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) forma pessoas, especialmente as que vivem da agricultura familiar, aptas a produzir preservando os recursos naturais; no Recife, um grupo de estudantes está tentando, atualmente, recuperar trechos da mata às margens do Capibaribe, plantando espécies vegetais nativas; e há os que limpam trechos do rio por conta própria. Fontes: Wikipédia, G1, Toda Matéria, Ferdinando de Sousa, Algomais, Petribu, Pesquisa Escolar e canal Gilberto Geraldo.
Algumas adaptações de Morte e Vida Severina:
Primeira montagem teatral feita pelo grupo Norte Teatro Escola do Pará - final dos anos 50;
Montagem teatral no teatro TUCA - PUC, dirigida por Roberto Freire e musicada por Chico Buarque - 1965;
Filme, unindo as duas últimas partes da trilogia, dirigido por Zelito Viana - 1974;
Especial para a TV Globo, dirigido por Walter Avancini - 1981;
História em quadrinhos, feita pelo cartunista Miguel Falcão, posteriormente adaptada para animação 3D - 2010.
site:
https://youtu.be/eHHKeTtD3wo?si=POv2Ir9zJaSgY0jc