legarcia 11/01/2023
Dura vida de retirante
João Cabral de Melo Neto costumava dizer que ?Morte e Vida Severina? não o satisfazia, que não entendia o grande sucesso da obra perante a outras produzidas por ele que julgava serem superiores. De certa forma, compreendo-o, mas, por esse livro ter sido meu primeiro contat?o com a produção de João Cabral, essa constatação me fez ficar um tempo contemplando as possibilidades das outras obras desse autor.
A questão é que escrever uma poesia boa é difícil, e faze-la com a maestria demonstrada por João Cabral nessa obra é extraordinário. Nos versos estão condensada uma história cheia de significados que, por meio da arte, potencializa-se e causa em nós um efeito dilacerante.
?Morte e vida severina? é definida em seu subtítulo como um auto, e para mim isso é incrível, uma vez que pode-se traçar uma relação entre o livro e os autos religiosos, dando uma possibilidade interpretativa muito interessante. Um dos pilares do cristianismo é a questão da peregrinação, o povo de Deus está sempre em uma caminhada para a cidade prometida, para o Reino dos Céus. A retirância de Severino, porém, distingue-se da cristã, pois diferente destes que andam em busca da elevação espiritual, Severino caminha pela sobrevivência.
É interessante perceber a tentativa do autor de distanciamento do poema, é como se João Cabral quisesse que os personagens expressassem a vida desse povo que não é ouvido e representado na sociedade, desse povo que sofre pela dureza imposta.
Severino aqui representa todos os retirantes, como uma metonímia. A voz dele é ecoada e amplificada em vários indivíduos. Quanto mais Severino fala dele, mais ele perde a individualidade para representar tantas e tantas pessoas. E esse efeito de reverberações de histórias reais é uma constatação dolorosa. Perceber que a vida e as dores de Severino são compartilhadas por milhares de pessoas causa náuseas.
Alguns dos poemas que li nessa obra marcara-me para sempre. A secura e a dureza dos versos são dolorosamente sentindos porque sabemos que são reais, que representam situações e realidades que acontecem hoje e agora.
Na retirância, sempre existe a esperança. E como em ?os sertões?, fortes são os que tentam, os que resistem e lutam. Porém, ao narrar a chegada de Severino a seu destino, ficamos diante da seguinte questão: diante dessas condições, vale a pena continuar vivendo? O que podemos ter ou fazer que valha a pena todo esse sofrimento? Ao mesmo tempo que reflito sobre a vida e creio que ela vale a pena ser vivida, esse exercício de colocar-se nessa situação, com as perspectivas e expectativas dessas pessoas e tentarmos entender esse dilema que infelizmente faz parte de muitas realidades.
A leitura, então, desse livro colocou-me diante de cenas e questões que nunca irei esquecer. Recomendo fortemente! Ainda quero conhecer outras obras desse que demonstrou ser um excelente autor e um dos grandes nomes da literatura brasileira!