Henrique 05/10/2019
Ensaio sobre Morte e Vida Severina
Um dos procedimentos mais evidentes de Morte e Vida Severina é o atravessamento da palavra concreta como potência sensorial na construção de um mundo seco, cujos cortes geométricos localizam as personagens em cenários de fome e sofrimento. Tais referências acontecem explicitamente, pois para João Cabral de Melo Neto não há outro modo de contar que não seja pelas palavras cristalizadas e precisas de um mundo caótico e disforme. Mesmo na aproximação física das personagens parece haver um distanciamento pois há o vazio do ronco do estômago incinerando-as por dentro. Nenhuma forma de convivência é mediada sem o barulho expressivo da fome.
Nesse mundo de privações, o recorte detalhado, perfeccionista de versos, trabalha em função de um mundo refratário e episódico, como vísceras enraizadas na realidade agonizante das pessoas que pelo poema transitam.
A despeito da realidade social dura e miserável, há uma solidão no retirante protagonista, agonizando de privação totalizada num mundo em que a completude dos sentidos se mostra inacessível, mera ilusão como oásis num deserto. A ausência habitual do eu lírico abraça a fidelidade das personagens; só estas merecem a palavra, ainda que de dor. Por vezes, parece que encontram liberdade nessa obsessão estrutural de João Cabral.
Por vezes, é esse perfeccionismo cabralino que inaugura a sensação de cárcere em um mundo vasto e sem fronteiras, um paradoxo entre paisagens abrangentes e transeuntes cujos vestígios deixam rastros árduos duma existência incompleta, materialmente incapaz de revelar-se num todo. Isso podemos ver pela ausência da subjetividade poética, que inaugura e otimiza espaços discursivos no vai e vem das pessoas em buscas de oportunidades onde os rios terminam, no mar de Recife. Em seu início, lemos: " O meu nome é Severino,/ como não tenho outro de pia". Na sequência, este Severino - que é muitos severinos- vai especificar cada vez mais sua identificação: "deram então de me chamar/ Severino de Maria;/ como há muitos Severinos/ com mães chamadas Maria,/ fiquei sendo o da Maria/ do finado Zacarias". O poeta parece apenas conectar, com o rigor da forma, testemunhos que o atravessam, que formam vozes discursivas por si só, como se o escritor atendesse a um chamado de testemunho. O poeta dá sintaxe ao trânsito retirante das personagens.
Ali, no trânsito do sertão rumo a Recife, se dá a condição perpétua de retirante, algo que deixa de ser um adjetivo transitório para caracterizar integralmente as personagens. Apesar da origem comunitária dessas pessoas, essa identificação de pertencimento é rasgada pela e durante a longa viagem.
Os procedimentos de composição de Morte e Vida Severina incluem a fragmentação em episódios, em que Severino é apenas testemunha calada em certos acontecimentos. Os poemas aludem sempre a uma infinidade de histórias por contar, uma constelação não dita de narrações possíveis com as quais Severino se depara.
Se o poema permite-se pegar emprestadas essas hipóteses de histórias, é para funcionar justamente como a retirada de seu protagonista que, furtivo, passa pelos lugares procurando emprego e ouvindo causos, sem deixar uma contribuição expressiva a esses locais.
Procedimentos elaborados em histórias justapostas que compõem um painel das dificuldades da retirada, da busca por um lugar messiânico tão impossível quanto distante.