alice 23/01/2021
O MELHOR PIOR PERSONAGEM
Sem sombra de dúvidas, O Morro dos Ventos Uivantes foi um dos melhores que já explorei na minha vida como leitora.
Quando peguei esse livro pra ler, nunca passou pela minha cabeça que abordaria as temáticas que encontrei aqui. Eu lia sobre Emilly Brontë e sua timidez, a morte precoce e, muitas vezes, já ouvi de professores que esse livro era sensacional. Tinha expectativas sobre ele, é claro, porque já havia lido "A Inquilina de Wildfell Hall" da irmã de Emilly, Anne, e simplesmente me apaixonei pela fluidez da narrativa, pela dureza dos posicionamentos e pelas personagens grandiosas e complexas, mas o que encontrei em "O Morro dos Ventos Uivantes" atingiu um outro patamar. Que monstro essa autora guardava em baixo da pele introspectiva. Que escrita, que talento. Ela é inigualável.
O livro narra a história de Heathcliff, um menino sem nome propriamente dito, racializado e órfão. Ele é adotado por um aristocrata inglês, o senhor Earnshaw, e passa a viver com os outros dois filhos do homem em sua propriedade, O Morro dos Ventos Uivantes.
Logo de cara, ambos os filhos biológicos detestam o novo membro da família, assim como os empregados. A maioria, obviamente, por aversão ao fato de Heathcliff ter a pele escura. Um em especial, tanto por isso quanto por algo mais: Hindley, o filho mais velho e herdeiro do senhor Earnshaw, vê Heathcliff se tornar o favorito do patriarca e, por ciúmes e pelo racismo, abusava física e psicológicamente do menino às escondidas. Ele, por sua vez, nada dizia ao dono da propriedade sobre os constantes ataques, mesmo sabendo que possuía influência sobre ele. O que aparenta ser uma atitude passiva, na verdade, se descortina numa natureza vingativa, que acumula todas as infrações contra si para, posteriormente, se vingar.
Sob a descrição de Nelly, empregada da casa que narra quase toda a história dessa família macabra, Heathcliff é descrito como insensível, calado e odioso. Essa personalidade, segundo ela, só se abrandava no que dizia respeito a Cathy, irmã de Hindley e filha mais nova do senhor Earnshaw. Ele e a garota desenvolvem um forte laço durante os anos de convivência, e esse só vem a ser quebrado quando o pai dos garotos morre e Hindley assume o controle da família, empurrando Cathy para os braços da família vizinha. Vendo oportunidades vantajosas para a própria vida, Cathy se casa com o herdeiro dessa família, e isso vem a se tornar a gota d'água para Heathcliff, que foge na calada da noite sem dizer uma palavra (o irmão da Jane Eyre KKKK). Anos depois, ele volta, rico e com sede de vingança. E é assim que inicia mais um ciclo de abusos na história.
Não entrarei em mais detalhes sobre o plot em si, mas gostaria de dedicar algumas palavras a respeito das características morais de alguns personagens do livro: ninguém vale uma banda de um real. Mas, ao mesmo tempo, pelo menos em alguns casos, conseguimos entender a raiz de certas transgressões.
Cathy, por exemplo, narcisista ferrenha, pensa obviamente apenas nela e ama só a si mesma. Esse, alias, é o motivo pelo qual também ama Heathcliff: para ela, ambos são iguais - algo que, honestamente, não posso discordar. É daí que vem a famosa frase tão romantizada em livros contemporâneos de romance: "Seja qual for a matéria de que nossas almas são feitas, a minha e a dele são iguais [...]". Nesse trecho, a meu ver, o que é apresentado não é uma visão sobre amor romântico que Cathy ou Heathcliff sentem um pelo outro. O que enxergo aí é uma prova de que ela vê nele uma extensão de si e por isso o ama e nutre tanta admiração. No entanto, sabe que de nada lhe serviria uma união com Heathcliff por meio do casamento. Dessa forma, escolhe se casar com o herdeiro dos Linton, que a amava e era extremamente manipulável. A questão que isso deixa é: em seu lugar, como fazer algo diferente?
Heathcliff, da mesma forma, abre em nossa mente o tensionamento seguinte: "quão negativamente os abusos praticados por terceiros podem afetar nossa vida permanentemente?". Não estou tentando justificar o que ele faz durante o restante (e maior parte) da história, muito menos dizer que ele poderia ser outra pessoa. É impossível de dizer. O que pontuo aqui é que os feitos de Hindley, seu racismo, seu ciúmes, seu comportamento inadmissível, ajudaram a transformar Heathcliff numa pessoa tão cruel quanto ele próprio. Os Linton também possuem parcela de culpa nessa questão.
Outro ponto importante a respeito da conduta desse personagem tão cheio de camadas são os reflexos discursivos de certas posturas dele dentro da história. Como já dito inicialmente, Heathcliff é uma pessoa racializada. Sua etnia é uma incógnita, pois, suponho, Emilly Brontë precisou utilizar de recursos linguísticos para disfarçar esse fato tão evidente para nossos olhos modernos atualmente e evitar, é claro, censura. No entanto, lá está. A constante comparação de sua pele escura e de seus traços "diferentes", de sua língua "irreconhecível"... Em um momento bem específico, gosto sempre de ressaltar, Nelly conta como uma vez o comparou com um filho de uma rainha indiana. A partir disso, comecei a refletir sobre a maneira como essa informação relaciona-se com todo o resto. Se Heathcliff veio de um contexto de colonização, isso justificaria sua aversão à língua inglesa, por exemplo. Na maioria das vezes, ele a utilizava apenas para xingar, escarnecendo da dominação dos costumes ingleses na sua vida. Justifica também, sua postura calada. É provável que, orgulhoso como era, preferia ficar calado a usar a língua daqueles que sempre o desprezavam. Isso, para mim, é uma possível materialização de um espírito de resistência daqueles sob o jugo inglês. A figura de Heathcliff não representa apenas ele mesmo, mas é histórica.
No entanto, nem tudo são flores e Emilly também não é perfeita. Esta outra incógnita que encontrei no livro, não sei se proposital, apresentou-se como tal para mim e até hoje não sei resolvê-la: quando Heathcliff tinha seus acessos de raiva e agressividade, a narração sempre o descrevia como um monstro, uma fera bestial e de outra espécie, enquanto outros homens de condutas parecidas, Hindley por exemplo, eram descritos apenas como transgressões e problemáticos. Nunca bestializados. Me pergunto se isso era reflexo do racismo de Nelly, a narradora, e foi estrategicamente colocado, ou se reflete-se ironicamente no campo discursivo e demonstra que Brontë não conseguiu levar sua crítica a todos os âmbitos da própria vida também.
Por ultimo, voltando ao que se refere à relação de Heathcliff e Cathy, por que será que ele, que odiava a tudo e todos, abria exceções a Cathy? Creio que isso se deve ao narcisismo dela. Como? Bem, ninguém nunca tratava Heathcliff como um ser humano, como igual, à exceção de Cathy. Ela o respeitava porque via a si mesma nele. Suas almas, sua matéria, tudo neles correspondia à mesma coisa. Ele obviamente, nunca entrou na cabeça de Cathy como nós, leitores, por isso se apegou de maneira obsessiva e nunca percebeu que o amor e respeito dela também poderiam ser deturpados.
O desfecho é que nosso anti-herói não consegue se vingar da maneira específica que queria no final do livro - o que não significa que não tenha conseguido causar um grande estrago. Assim, ele direciona sua raiva para pessoas relacionadas a seus antagonistas. Esses novos personagens, no entanto, não dão continuidade ao ciclo macabro que essas famílias iniciaram. A educação os liberta, de certa maneira, dos comportamentos abusivos que poderiam gerar outros abusadores. Foi um final feliz, o que conteceu. Aqueceu meu coração e me deixou emocionada.
Em termos gerais, esse foi um dos livros mais viciantes que já li. O macabro presente em toda a história me horrorizava e me deixava mais vidrada ainda. As sensações são extremamente agridoces no que diz respeito à relação que o leitor tem com Heathcliff, ele tem uma personalidade horrível, mas é impossível abrandar o interesse em sua jornada.
Recomendo demais, especialmente pra quem quer começar a ler mais clássicos. O ritmo é esplêndido e te prende, a linguagem não é rebuscada e a história, explorando diversos elementos do gótico, é riquíssima.