João Ks 25/09/2024
O Guarani - José de Alencar.
“Apaixonadamente como Peri”, diz a canção de Caetano.
A letra ecoa os traços intensos e generosos com que José de Alencar pintou o seu protagonista de O Guarani; Peri é o modelo genuíno do herói grego, com suas virtudes de nobreza, coragem, força e beleza; sintetiza, ademais, o conceito do bom selvagem evocado pela filosofia de Rousseau.
Nessa qualidade, o herói indígena exprime no mais alto grau a singeleza da bondade e a inocência do homem original; uma criatura tal que não conhece outra linguagem senão a da natureza, esse berço criador que comunica claramente os seus fenômenos através de sinais insuspeitos.
Mas Peri avança sobre as virtudes comezinhas a todo herói; não se contenta em ser somente mais um guerreiro valente, belo, forte e sábio; encontra o leitmotiv de sua existência na figura de sua senhora, Ceci, que espelha aqui, e em alguma medida, os traços da Virgem; é então que sobressaem as qualidades adicionais do nosso herói, sua dedicação e abnegação extraordinárias; o completo aniquilamento do eu em favor do outro.
As figuras de Peri e Ceci estão como que envoltas por um manto de santidade, enleadas num amor platônico; a união dessas duas personagens em torno das quais gravita toda a narrativa ocorre por força do choque de raças próprio da época do Brasil colonial.
A história se passa em 1603, quando na região da Serra dos Órgãos, onde atualmente se situam, entre outras, as cidades de Teresópolis e de Campo dos Goytacazes, no Estado do Rio de Janeiro, o fidalgo português Dom Antônio de Mariz e sua banda de aventureiros exploram a região em busca de riquezas e de terras para assentar sua colônia.
Esse fidalgo, pai de Cecília (Ceci), erige sua imponente morada no cimo de uma penha, às margens do rio Paquequer; ali passa a viver tranquilamente com sua família, rodeado pela exuberante selva brasileira que prodigaliza no entorno suas dádivas e mistérios, mas também seus perigos.
O romance é permeado de elementos idílicos que caracterizam esse primeiro arquétipo da literatura romanesca brasileira, erigido sobre a ternura do bom selvagem e da poesia triunfal da natureza brasileira; sobejam ali o lírico e o bucólico.
Há também aí os rastros do romance de cavalaria, que pavimenta o enredo com os valores do estilo, de que é exemplo máximo o nobre fidalgo Antônio de Mariz, honrado e leal servidor da coroa portuguesa, que tem sob seu baraço a obediência dos bandeirantes que lhe servem corajosamente nas investidas sobre as terras virgens do Brasil.
José de Alencar urdiu a trama de tal modo que os acontecimentos se revelam num movimento de vaivém; alguns fatos que se adiantam na narrativa somente são esmiuçados e esclarecidos a posteriori, o que contribui para a atmosfera de suspense e curiosidade que deitam sobre o leitor.
Evidentemente o livro se insere no gênero do romance indígena, do qual se tornou mestre o escritor José de Alencar; trata-se de um baita autor brasileiro que representou maiormente o movimento do romantismo.
Ainda que por motivos óbvios não se deva reduzir a literatura brasileira a esse único movimento literário, também não é lícito condenar o romantismo, tampouco o subgênero do romance indígena, a escritos de somenos importância.
O estilo do autor e o gênero do seu romance de excelência, o indígena, cumpriram um lugar necessário na história da literatura, exultando as belezas naturais da terra, as virtudes dos elementos e a sábia primogenitura do índio sobre o homem branco nas terras recém-descobertas.
As figuras descritas são ingênuas, idealizadas, superestimadas, e produto da mais original quimera literária do romantismo literário de José de Alencar; a natureza do entorno evolui a traços graciosos, benfazejos e inebriantes; por um momento o pecado original de desfaz e o Éden está entre nós novamente. Mas tudo isso, volto a dizer, é próprio de um certo movimento literário necessário; que como todo movimento de ideias produz seus exageros, vai lá.
É somente quando obras como essa se somam a outras do gênio inventivo, voltadas a urgências outras do espírito humano, como aquelas que marcaram o modernismo e os romances regionalistas, pejados de cinismo, de realismo e de crítica social, que então o quadro literário de um país se completa.