Amós 18/04/2021Sobre a besta devoradora de homensGerminal foi um livro que sempre sonhei ler desde que, quando tinha por volta de quinze anos, assisti a uma peça realizada por alunos mais velhos na minha escola. Naquela idade não entendi muito do que acontecia mas me fascinou os discursos de Etienne e da revolta de todos os operários. Pois bem, eis que quase dez anos se passaram e eu inicio a leitura da obra. Tive a felicidade de ler numa edição da Abril - capa dura com detalhes em dourados e com direito a ilustração na contracapa - que foi impressa em 1979, plena Ditadura Militar. Sabendo o que me aguardava isso me animou.
O livro foi escrito pelo autor francês Émile Zola, falecido em 1902 e que dedicou boa parte de sua vida à luta em prol de causas socialistas e nas divulgações dessas ideias através de seu ofício de jornalista e também como romancista. Trabalhou em vários jornais e escreveu séries de livros que solidificaram a escola naturalista dentro da literatura francesa, sendo Germinal considerado o auge dessa produção. O livro foi publicado em 1885, momento em que a França via a 3º República se estabelecer sobre os escombros da amarga derrota na Guerra Franco-Prussiana. É sabido que para iniciar sua escrita, o autor trabalhou por alguns meses em minas de carvão para ambientar-se com a realidade do operariado da época.
A obra se assenta sobre a história de Etienne, um operário recém contratado numa mina de carvão numa região carbonífera do norte francês. Sob os olhos desse personagem o leitor é introduzido no universo desses trabalhadores. É fascinante como é descrito o funcionamento da mina em seu cotidiano e na constante comparação com uma besta que devora homens e cospe fora seus corpos mortos em acidentes ou adoentados depois de décadas de trabalho. As condições de trabalho são as piores possíveis, como jornadas de trabalho extenuantes e nenhuma garantia de segurança ou conforto no trabalho.
A imersão nesse universo minerador se completa quando Etienne encontra abrigo na casa de uma família de Maheu, um dos seus colegas de mina. Nesta casa o leitor encontra os exemplos mais puros dos trabalhadores dessas minas de carvão, pois são pessoas dedicadas ao serviço que lhes cobra a saúde e não paga a eles o suficiente para comprar o pão para crianças. Em torno dessa família vive uma vizinhança que compartilha dos mesmos valores e que conta com uma vida quase que comunal por conta da falta de privacidade típica de cortiços como aquele.
Simultaneamente a isso o autor nos apresenta ao núcleo rico da trama, as famílias dos donos da mina e de seus altos funcionários. O luxo, a mesquinhez e a extravagância desses personagens marca claramente o contraste entre esses dois universos, do burguês e do operário. As ansiedades desses personagens giram em torno de jantares sociais ou dos lucros e prejuízos de suas empresas de carvão enquanto nos cortiços mães e filhas se endividam ou cedem o próprio corpo para ganhar crédito na venda local e assim ter o que dar de comer para seus filhos esfomeados.
A trama do livro começa a crescer quando os donos da mina decidem mudar a forma de pagamento dos operários, deixando-a mais confusa para que estes recebam menos a cada semana de trabalho. Esse é o estalo porém para que Etienne se manifeste e ponha à prova todo conhecimento sobre o socialismo que adquiriu através de revistas, jornais operários e trocas de cartas com outros militantes da 1º Internacional dos Trabalhadores.
Os desfechos dessa história levam cada um dos leitores ao sofrimento e exaspero com as situações que esses trabalhadores irão enfrentar. Neste momento, aqueles que ainda hoje seguem na luta pelo socialismo vêem que as dificuldades enfrentadas não mudaram, somente se atualizaram. O trabalho de base, a agitação e propaganda, o peleguismo e a falta de consciência de classes são elementos que afetam a vida desses operários e que ainda são problemas hoje dentro da política.
Germinal é um livro inescapável para aqueles que se consideram socialistas e para apaixonados por literatura e suas escolas mais históricas como o naturalismo. A belíssima estética da sua escrita combinado com uma trama crua e brutal torna a leitura desse livro num prazer particular, como uma criança que arranca a casca de uma ferida mal cicatrizada e que mesmo sentindo dor continua o fazendo para descobrir o resultado. Enfim, já considero essa obra uma das minhas favoritas e recomendo a todos. Em primeira instância trata-se de um documento sólido da vida dos trabalhadores no final do século passado e que marca uma fase da luta dos movimentos socialista; e em segunda instância projeta no militante socialista da atualidade que a luta avançou muito nesse século e meio que se passou mas muito ainda há de ser feito para a emancipação da classe trabalhadora.
“Homens brotavam, um exército negro,
vingador, que germinava lentamente
nos sulcos da terra, crescendo para as
colheitas do século futuro, cuja germinação
não tardaria em fazer rebentar a terra.“
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