Herick 19/07/2012
Caminhos cruzados - Erico Verissimo
Confiram a resenha com melhor visualização em meu blog: http://instintodeler.blogspot.com.br/2012/07/caminhos-cruzados-erico-verissimo.html
Caminhos cruzados é um romance escrito por Erico Verissimo, ilustre escritor brasileiro do século XX. Publicado em 1935 como forma de crítica à sociedade da época, também é conhecido por retratar o Rio Grande do Sul.
"A vida, prezado leitor, é uma sucessão de acontecimentos monótonos, repetidos e sem imprevisto. Por isso alguns homens de imaginação foram obrigados a inventar o romance.
O Homem, na Terra, nasce, vive e morre sem que lhe aconteça nenhuma dessas aventuras pitorescas de que os livros estão cheios.
Debalde os romancistas tentam nos convencer de que a vida é um romance. Quando saímos da leitura duma história de amor, ficamos surpreendidos ao nos encontrarmos na vida real diante de pessoas e coisas absolutamente diferentes das pessoas e coisas das fábulas livrescas.
Repito: a vida é monótona. (...)"
Página 299.
Na década de 1930, Porto Alegre é cidade em constante desenvolvimento: a cada dia o número de habitantes aumentava, a constante força da política reverberava com desenvoltura e a elevada chegada de pessoas cultas na cidade a tornava um ícone no Brasil.
Em meio as generalizações do contexto, contudo, nos seus subúrbios e áreas mais pobres, vivia todo tipo de gente. João Benévolo, o homem sonhador e desempregado, que no presente momento vive numa situação de miséria estarrecedora, com sua esposa lamentosa e o filho frágil, sempre adoentado. Maximiliano, o tuberculoso na véspera de morte, que vive com sua esposa e dois filhos num caso de necessidade extrema.
O professor Clarumundo, um homem simples, solitário e tímido, porém sábio e amante de Einster, cujo maior almejo é realizar a vontade de escrever seu livro sem precedentes. Fernanda, enamorada de Noel, a mulher experiente e vivida, estudiosa e aplicada, mas que por infortúnios nunca consegue o trabalho adequado para sua formação.
A família do comerciante bem-sucedido Honorato Madeira, com a esposa Virgínia, mulher áspera e odiosa mãe, e o filho Noel, homem estudado, mas cujas circunstancias da vida o obrigou a tornar-se enfurnado em si mesmo, sempre frágil, sonhador e despreparado para o mundo. Dona Dodó, religiosa fervorosa da igreja católica e esposa do almejado empresário a se tornar político, Teotônio Leitão Leiria. O ex-interiorista José Maria Pedrosa, que ganhou na loteria e esbanja dinheiro em Porto Alegre, com sua esposa Maria Luisa, resmungona e amante da vida em desgraça, e a filha, Chinita, mulher infantilmente apaixonada pelo cinema americano.
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Confesso com grande pesar que iniciei a leitura deste livro de Erico Verissimo com pouco mais do que simplesmente um pé atrás, se permitem-me dizer. A relutância com que deparo ao pensar em ler obras clássicas, ou mais especificamente os clássicos brasileiros, é verdadeiramente algo amedrontador. Sempre lembro-me das leituras monótonas, tediosas e ininteligíveis que fui obrigado a ler na escola, que é, na realidade, uma forma excessivamente falha de incentivar pessoas à literatura e que proporciona o exato oposto do que se busca ao fazê-lo: o afastamento de quase todos os indivíduos que ainda refletiam na necessidade da leitura. Creio que não sou único a ter essa ideia das leituras escolares que nos são forçadas goela abaixo.
Caminhos cruzados foi uma dessas iniciativas escolares, mas ao qual fui submetido agora que possuo uma mente um tanto mais preparada para algo desse tipo, além de já ser um firme prestigiador da literatura. Admito, porém, que me vi envolvido pelo livro desde o início. Encontrei uma narrativa muito leve e dinâmica, planando entre as superficialidades mais banais e sentimentos extremamente realistas de tensão e sofrimento. A contradizer meu primeiro juízo sobre o livro, não encontrei um arsenal de termos e expressões desconhecidas que tornam a leitura cansativa e de complexa interpretação — apenas umas poucas, aqui e ali, que costumam me fazer buscar um dicionário, mas que geralmente tem em vários livros.
A história é ambientada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e busca, por meio dos diversos personagens, abranger a incontáveis situações que a vida pode trazer-nos mediante as regras impostas pela sociedade, dividindo-a em camadas opostamente desproporcionais: a riqueza de menos e a pobreza de mais, a pouca fartura e a muita miséria. O excesso disso é desumano.
O livro, que na época de sua publicação original, apresentou a "inconformidade do romancista ante as desigualdades, injustiças e absurdos da sociedade burguesa" e tomou como base o estado de Porto Alegre, ainda hoje tem conteúdo suficiente para criticar esses mesmos absurdos, que ocorrem apenas de uma maneira minimamente renovadas, além de ser válida para todo o mundo.
Caminhos cruzados é narrado inteiramente em terceira pessoa, mas distribui-se sob a concepção de vários personagens, cada qual com sua identidade e situação peculiar, vivendo em meio a soberba dos ricos, os religiosos hipócritas, os pobres indiferentes e conformados à situação miserável em que vivem. No entanto, indicia-se algo mais: o enredo abrange um contingente de personagens com características próprias, e de um modo muito simplório, a personalidade de cada um é aprofundada, tornando-os quase palpáveis.
Diferencia-se grandemente das histórias que costumeiramente lemos, que normalmente possuem protagonistas e começo, meio e fim. Contudo, nesta obra, enquanto apresenta os personagens, cada um vivenciando uma determinada situação, Erico deixa clara sua neutralidade ao não apontar nenhum predileto ou que tenha uma importância maior que outro qualquer. Todos eles, de uma maneira independente, possuem sua própria significância, mas que estando na mesma localização, emaranham suas condições umas nas outras com a mesma displicência que encontramos diversas pessoas em nosso dia-a-dia, na rua ou no trabalho, e constroem o enredo adequado para a iniciação do drama que tem a finalidade de criticar as injustiças da sociedade.
Não obstante, Erico Verissimo utiliza-se de uma tentativa propositalmente falha de imparcialidade, onde despreza sutilmente a classe alta, os ricos, e solidaria-se com a classe baixa, os pobres. De uma forma mais pessoal, também encontrei uma espécie engenhosa de ridicularização das atitudes e dos sentimentos corriqueiros dos seres humanos, como se em alguns instantes ele narrasse com ironia esses comportamentos comuns, mas não possuo base solida para afirmá-lo.
Ao contrário das suas outras obras, que de acordo com minhas pesquisas são extremamente reflexivas, Caminhos cruzados não possui uma elevada reflexão sobre o mundo e os seres humanos, nem é recheado de reflexões subjetivas — é um livro que aponta, sem qualquer rodeio, as condições em que nós vivemos e as quais somos submetidos por causa da sociedade injusta e incontrolavelmente obsessiva por ter cada vez mais, sem importar-se com as consequências das atitudes tomadas para atingir esse fim.
Por fim, concluo apenas desconsiderando todo o preconceito que senti antes de ler a obra, pois realmente esperava encontrar um clássico desinteressante e francamente levei a cara ao chão: a leitura é excelente! Recomendo à todos, sem exceção, e de forma especial àqueles que ainda pensam da mesma forma que eu pensava.