Gabriel Alencar 01/07/2021
Não é um clássico à toa
Corona me pegou, então o jeito foi me danar a ler. Não vou comentar sobre a doença, mas sobre o presente que ganhei quando li esse livro. Aliás, obra esta que foi resgatada lá na casa da minha avó (relatei isso aqui) e acabou sendo um bálsamo para esses dias cheios de leitura.
E já que estou comentando sobre como consegui essa edição, preciso novamente relatar o pesadelo que são algumas edições antigas. Eu não tenho ideia de que editora é essa tal de "Dicopel", tampouco há informação alguma no livro quanto à data de publicação. Eu chuto na década de 1980 só pra ter um chute mesmo.
Este livro na verdade contém duas obras (vê-se aí "Eurico, o presbítero" – que, aliás, será minha próxima leitura) e faz parte de uma coleção de três volumes da "Literatura luso-brasileira". Presumo eu que isto talvez seja parte de um material didático ou tenha vindo como brinde em alguma revista de assinatura da época.
O livro parece ser de coleção e encomendado para estes clubes do livro ou coisa assim. Difícil, se não impossível, definir a origem. De qualquer forma, dá gosto pegar num livro de folhas grossas, com gramaturas que não se veem mais hoje em dia. Pena que estava jogado num armário velho, senão tinha tudo pra estar um brilho.
Bom, pra continuar, Camilo Castelo Branco (1825-1890) é um daqueles nomes que todo mundo ouve falar na época da escola. Acaba sendo obrigatório pelo menos reconhecer o nome da literatura portuguesa. Agora, ler e gostar são duas coisas diferentes. Por isso eu sinceramente creio que não teria conseguido apreciar o autor da mesma forma que o faço hoje.
A dificuldade na leitura está presente até hoje, acredite se quiser. A verdade é que trata-se de um português antigo. Eu consigo ler todas as palavras, mas entender o significado às vezes escapa. Por exemplo, quem aí sabe o que "chiste"? Se eu não conhecesse um pouco de espanhol (e veja só que coisa né) jamais saberia que esta palavra significa "piada".
Já quanto à história em si, o que dizer? O autor era um romântico inveterado (basta ver o período em que viveu). Aliás, vale o registro de que ele escreveu essa obra toda em meros 15 dias, enquanto estava preso! O enredo traz amor, morte, triângulos amorosos, decepções e aqueles sentimentos típicos dos apaixonados:
À hora da partida, Simão tremia e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber que os encantos da vida, os mais angélicos momentos da alma, são esses lances de misterioso alvoroço que aos mais serôdios de coração sucedem em todas as sazões da vida, e a todos os homens, uma vez ao menos. (p. 40)
Agora, além dessa tragicidade extrema, típica do Romantismo, acho que o grande tema do livro, na verdade, é o orgulho. Temos ali o apaixonado que é tão inseguro e orgulhoso que prefere matar o rival a simplesmente conquistar a donzela; temos o pai que é orgulhoso e proíbe o casamento, a ponto de preferir ver a filha morrer do que casada com o mocinho; temos o orgulho da mulher apaixonada que, caso similar, prefere perder a vida a ficar sem o amante. Se pararmos pra pensar, o orgulho e a paixão desenfreada andam lado a lado mesmo.
Mas é inegável que o livro é super bem escrito. Os diálogos, as personagens, tudo é bem desenvolvido. A trama tem algumas reviravoltas boas, daquelas que deixa a gente preso e curioso em saber o que vai acontecer. E, ah... tem mais uma coisa... o português. Gente do céu. É nesses momentos que vemos como nosso idioma é lindo, putz, olha isso:
O coração é a víscera, ferida de paralisia, a primeira que falece sufocada pelas rebeliões da alma que se identifica à natureza, e a quer, e se devora na ânsia dela, e se estorce nas agonias da amputação, para as quais a saudade da ventura extinta é um cautério em brasa; e o amor, que leva ao abismo pelo caminho da sonhada felicidade, não é sequer um refrigério. (p. 142)
Não é à toa que um cara se torna um marco da literatura portuguesa; tampouco que um caboco devora um livro desse em poucos dias. O livro não é um clássico por pouca coisa, não. Vale a pena a leitura.
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