3.0.3 26/02/2024
Ante a lanterna de Diógenes: a busca pela verdade em um mar de mentiras
“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”
Diógenes de Sinope foi um filósofo grego conhecido por empunhar, em plena luz do dia, uma lanterna acesa diante do rosto dos cidadãos atenienses, alegando que estava à procura de algum homem honesto. Vivendo de acordo com os seus princípios e comprometido com a honestidade, Diógenes rejeitou as convenções e defendeu a verdade a todo momento e sob qualquer circunstância. Atualmente, o filósofo grego ainda é lembrado pelo seu compromisso com a verdade e por viver de acordo com suas crenças.
Quincas Borba (1891), de Machado de Assis (1839-1908), narra a história de Rubião, um morador de Barbacena, cidade situada em Minas Gerais. A jornada de Rubião o leva de uma vida de dificuldades como docente ao patamar de amigo e confidente de Joaquim Borba dos Santos, também conhecido como Quincas Borba. O raciocínio por trás do título do livro é bastante complexo, visto que a obra contempla não apenas um, mas dois Quincas Borba: o humano e o cachorro. Curiosamente, é o cachorro quem persiste durante toda a narrativa, já que o humano morre logo no início da trama.
O livro, porém, é dedicado a desenvolver a teoria Humanitas, formulada pelo filósofo Quincas Borba ainda em vida e resumida no lema “Ao vencedor, as batatas!”. Essa teoria se assemelha à defendida por Charles Darwin (1809-1882), que postula que a natureza sempre favorece os mais fortes. Na obra, por exemplo, notamos isso nas batalhas que os indivíduos enfrentam nas cidades grandes, repletas de armadilhas e adversidades.
O narrador machadiano dialoga com o leitor, convidando-o a mergulhar na narrativa que se desenrola na segunda metade do século XIX, período marcado por significativas mudanças sociais. A narrativa começa quando Quincas Borba adoece e acaba morrendo. Em seu testamento, o filósofo lega todo o seu patrimônio a Rubião, com a condição de que o amigo cuide de seu cachorro, que, inclusive, tem o mesmo nome do filósofo. Com a nova riqueza, Rubião abandona a docência e se muda para o Rio de Janeiro. É nesse momento que a trama começa a ganhar seus contornos.
Rubião conhece o casal Palha, formado por Cristiano e Sofia, durante a viagem de trem de Minas para o Rio de Janeiro. O casal se torna o guia de Rubião na cidade, já que o ex-professor desconhecia a movimentada metrópole carioca. Nesse ponto, Cristiano percebe a inocência de Rubião e vê nela uma chance de acumular riqueza. Rubião, por sua vez, apaixona-se por Sofia, fato que acaba originando um triângulo amoroso (que não se concretiza).
Em seguida, Rubião fixa residência em Botafogo e recebe um convite para jantar na residência do casal Palha. Depois do jantar, Sofia convida Rubião para um passeio pelo jardim. Nesse momento, Rubião expressa o seu amor por Sofia, propondo que ambos olhem todas as noites para as estrelas como prova do seu amor. Apesar dos avanços e das declarações, Sofia rejeita Rubião, pois se diz totalmente comprometida com o casamento e respeitosa com o marido. Porém, quando Sofia conversa com Cristiano sobre o encontro, ele a incentiva a continuar amarrando Rubião, explorando sua paixão para ganhos pessoais. Relutante, Sofia sucumbe à persuasão do marido, sentindo-se compelida a submeter-se aos seus desejos de esposa zelosa e obediente. A maneira como Cristiano joga para extrair quantias cada vez maiores de Rubião é objeto de constante crítica. Personagens como esses – que encarnam a mesma crueldade que persiste na sociedade contemporânea – atraem a atenção por manipularem a todo momento a ingenuidade das pessoas. Nesse sentido, a obra também nos apresenta um tema universal centrado na presença de enganadores.
O romance Quincas Borba apresenta uma crítica à conduta humana. À medida que nos aprofundamos na narrativa, acompanhamos o declínio de Rubião devido à má gestão de sua riqueza por parte de Cristiano Palha e aos seus próprios gastos extravagantes, muitas vezes à custa de indivíduos oportunistas. Enquanto a condição financeira de Cristiano melhora, pouco a pouco, Rubião, consumido pelo amor, enlouquece. Ele sustenta um suposto adultério entre Sofia e Carlos Maria, que não acontece. A condição psicológica de Rubião piora ainda mais, fazendo-o ter alucinações; delirante, simula o penteado de Luís Napoleão. O seu estado de miséria o leva a ser internado em uma casa de repouso, mas ele reaparece em Minas Gerais ao lado de seu fiel cão. Apesar de receber o apoio de Angélica, Rubião morre tragicamente. O seu fiel companheiro, Quincas Borba, morre três dias depois. A vida de Rubião, que parecia estar em uma trajetória ascendente com uma casa no Rio de Janeiro, compromissos sociais e convivência com a classe alta, é tragada pelas implacáveis estruturas da cidade e seus habitantes. Quando os indivíduos agem apenas em benefício de seus próprios desejos, revelam a sua natureza animalesca. Em contrapartida, o cão é exemplo de lealdade, devoção, amor e gratidão. Se a sobrevivência cabe ao mais forte, este não foi Rubião.
O Humanitismo serve como uma resposta satírica a vários movimentos filosóficos do século XIX, oferecendo um exame tangível da realidade. Curiosamente, pode ser interpretado como um desdém pela natureza humana imperfeita. A obra reimagina e reconstrói esta realidade, destacando os aspectos mais sombrios da humanidade e expondo o seu egoísmo. Nesse sentido, ela fornece uma representação do comportamento humano, revelando um desejo universal de ganho pessoal, propriedade e controle. Além disso, aqueles que se opõem a estes desejos são frequentemente vistos como alvos de aniquilação.
De natureza intrusiva – conversando por vezes com o leitor –, o narrador machadiano cadencia o desenvolvimento da trama de forma fabulosa, suspendendo a conclusão dos capítulos e nos deixando ansiosos por novas revelações. O leitor mais perspicaz perceberá que a sucessão dos acontecimentos revela a perspectiva de Machado sobre as questões do mundo, ainda que por vezes persista a sensação de que o narrador está apenas contando a história sem fazer julgamentos. Diversos momentos da trama estabelecem paralelos entre as experiências das personagens e os dias atuais, incluindo e trabalhando temas como a exibição ostensiva de riqueza apesar da insolvência financeira, a corrupção, o racismo, o papel das mulheres, a instituição do casamento como pilar do patriarcado, o processo de envelhecimento etc. Assim, com sutileza ou firmeza, a obra aborda diversos assuntos do macrocosmo e microcosmo do Brasil, explorando suas interconexões. Nota-se que a escolha por esse tipo de narrador, portanto, é adequada, pois fornece um retrato abrangente da nossa sociedade.
Tudo o que vive busca a eternidade. Satirizando a noção de um mundo ideal e investigando a ideia de que o universo é uma vontade irracional e incompreensível que impulsiona a vida, percebe-se como a filosofia de Arthur Schopenhauer (1788-1860) está presente na obra. A manifestação da vontade não é racional, mas impulsiva, cujo objetivo é garantir a continuação da espécie em um mundo onde suas estruturas são apenas representações. Neste quadro, existem dois aspectos que não podem ser separados: o objeto – que existe dentro dos limites do tempo e do espaço – e o sujeito – que se forma através da consciência do mundo. Contudo, tendo em vista que a vontade nunca pode ser plenamente satisfeita, o mundo torna-se sofrimento, e o prazer acontece quando a dor cessa, mas isso é sempre temporário. Para Schopenhauer, os indivíduos autoconscientes percebem que são moldados e definidos pela sua própria vontade, que por sua vez é influenciada pela arquitetura de suas paixões e interesses. Abraçar os próprios desejos é inerente ao ser humano, mas Schopenhauer sugere que rejeitar a vontade seria um gesto de santidade, pois vai contra as nossas inclinações naturais. Sua filosofia investiga a oscilação entre a dor e o tédio que todos experimentamos. Sob a superfície da obra, percebe-se o descontentamento com a sociedade e seu pessimismo.
Sem dúvida, Machado de Assis é um escritor que merece múltiplas leituras. Embora a conclusão de Quincas Borba seja profundamente triste, sem qualquer vislumbre de esperança, o autor tem o poder de nos encantar, e isso não se deve apenas à natureza duradoura de suas histórias, mas também ao fato de ele nos ligar a acontecimentos que parecem totalmente afastados de nossas vidas, criticando, de forma contundente e irônica, as ideologias otimistas predominantes em sua época. Assim como na era de Diógenes, a sociedade também busca, em meio a um mar de corrupção e de enganadores, alguém que incorpore a integridade moral. Porém, após a leitura, parece-nos evidente que uma única lanterna não será suficiente para descobrir indivíduos honestos no meio dessa escuridão que encobre a ética e a moralidade.
“Quando Rubião voltava do delírio, toda aquela fantasmagoria palavrosa tornava-se, por instantes, uma tristeza calada. A consciência, onde ficavam rastos do estado anterior, forcejava por despegá-los de si. Era como a ascensão dolorosa que um homem fizesse do abismo, trepando pelas paredes, arrancando a pele, deixando as unhas, para chegar acima, para não tombar outra vez e perder-se.”