Val 10/08/2020
Só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida.
Ler Atlas de Nuvens do inglês David Mitchell é como saborear um prato de deliciosos canapés variados, com seis sabores, um melhor que o outro. Este é o sentido figurado sobre o prazer de ler esta obra de vanguarda literária, de estrutura inovadora e surpreendente. Utilizando a frase de um personagem do início do livro eu diria que “só mesmo seres inanimados podem ter tanta vida”, considerando-se aqui os seres inanimados como cada uma das seis criativas histórias que compõem a obra.
Neste livro, considerado a obra-prima de Mitchell, ele judia do leitor. Atormenta-nos com uma certa falta de apoteoses, com os gritos calados. Ele joga com o excitamento e a seguida resignação ao mesmo tempo em que vai acumulando pontos de alusão para preparar-nos para algo maior. Arguto, é um grande jogador literário, bulindo com quebra-cabeças muito inteligentes.
Aliás, inteligência é o que não falta neste precioso enredo, retalhado por diário de viagem, romance epistolar, novela policial, thriller, drama e aventura distópicos, todos com diálogos inteligentes e arguciosos, dramáticos e irônicos, coloquiais e sofisticados. Todos enredados num contexto de esperança, não só pelo texto, como pela recorrência de referências dos textos coirmãos e uma tatuagem em forma de cometa nos protagonistas que pode até sugerir possíveis reencarnações.
Mitchell é tão competente que você acredita, ao passar de uma história para outra, que está lendo o texto de um novo autor, tamanha a mudança de estilo percebida na história seguinte. E para completar, os primeiros cinco textos têm aproximadamente o mesmo volume, enquanto a sexta narrativa é diferenciada. Trata-se de uma história ambientada num futuro pós-apocalíptico em que a civilização e a linguagem humanas se deterioraram assustadoramente e voltam aos períodos que ironicamente hoje denominaríamos de bárbaros, não fosse o excepcional e assustador desenvolvimento tecnológico em questão.
A quinta história é uma distopia pressaga, de linguagem claudicante e inúmeros vocábulos inventados, a maioria de contrações de palavras normais, resultando na perfeita compreensão do texto. Já na sexta narrativa, a linguagem é inteiramente coloquial, informal e contracionada, porém bastante dinâmica e até divertida de se ler, num texto contado na primeira pessoa e com muitos diálogos. Enfim, recomendo que as seis histórias não devem ser percebidas individualmente, mas em sua totalidade, como parte de uma grande história.
O livro, como um todo, torna-se uma charada filosófica onde Mitchell afirma sua crença na bondade e na solidariedade humanas prevalecendo sobre o egoísmo, o fanatismo cego, a maldade e a violência de pessoas ardilosas e traiçoeiras que agem sós ou liderando comunidades rotuladas de governamentais, grupais, empresariais ou religiosas.
Enfim, Mitchell é sem dúvida um vanguardista literário. A estrutura deste Atlas de Nuvens bem atesta esta certeza, corroborada pela linguagem extremamente criativa, multifacetada, à vezes poética e incrivelmente original, em enredos surpreendentes, cultos, com ricos aspectos de pesquisa, além de revolucionários na forma e conteúdo. Obrigatório a quem gosta de inovações e qualidade literária.
Como estes textos inanimados têm tanta vida!
Valdemir Martins
31.07.2020
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