caio.lobo. 16/01/2023
A burocracia é uma superstição e a vida é uma burocracia.
Num nível este livro representa o estado burocrático e os poderes judiciários naturalmente injustos, mas se pode fazer outra hermenêutica, totalmente existencial, a partir do que temos vivido, ou seja, nosso lebenswelt (mundo vivido). O processo jurídico do protagonista K. surge do nada, assim como nossa situação também surge aparentemente do nada; a situação não se explica, como não se explica o nosso "estar aqui"; K. fica estagnado na vida por conta do processo, nossa vida não se desenvolve em coisa alguma, pois não temos idéia do que é esta "coisa" que tinha de ser a vida. Cada vez que me aprofundo nas obras de Kafka percebo que ele é o mestre do tédio, e isso num bom sentido, pois ao mostrar como o desenvolvimento do processo de K. não se desenvolve está refletindo todas as nossas relações cotidianas. Exemplos: dormir, acordar, comer, trabalhar, acasalar, repetir indefinidamente todos estes processos; trabalhar nos mesmos trabalhos monótonos/estressantes sem perspectiva de um final feliz, pois não tem fim (antes fosse um final triste); entramos no meio da História, seja ela a universal, história de grupos ou indivíduos e apenas na nossa própria história pessoal de repente, sem maiores explicações e nem veremos o fim. Tudo isso é enfadonho e tudo isso somos nós, assim como nós somos o K., passando de relações sociais aleatórias e sem sentido, tentando entender o processo ou os processos da vida sem esperanças de entender e tendo uma vida arrastada, assim como arrastada é a linguagem nossa perante os outros e pouco interessante é nossa vida para qualquer um. Depois do tédio vem o desespero, a angústia, a agonia. Queremos chegar ao fim da obra, mas sabemos que o fim do livro não dá em nada, então por que lemos isso? É porque não teria como não ler, iniciada a vida o que resta é viver.
Outro nível de interpretação do livro é ver Kafka como um Dante sem Paraíso, pois O Processo é o inferno com seus variados castigos, desde os físicos com chibatadas, estes menos importantes, passando pelos psicológicos como o dito tédio (melhor seria novas dores do que o tédio), mas principalmente o sofrimento existencial do nosso Ser que não se resolve, não transcende e nem o não-ser existe para apaziguar essa náusea existencial (náusea essa que não passa e nem põe pra fora seu conteúdo); não o "Nada" absoluto em O Processo porque vemos pela obra sempre houve e sempre terá processados, e logo percebemos que K. não é o personagem principal da obra e sim é o processo o ator principal, então de que importa nós já que não somos personagens principais de nossas vidas, mas são estes processos sem fim que irão continuar sendo?
Esta obra é precursora "espiritual" de outros autores e obras. O terror lovecraftiano compartilha do clima de um universo que conspira contra nós, mas de forma menos terrível, apenas com monstros e demônios e sem processo algum (sortudo seria K. se me vez de um processo destruindo seu espírito fosse um monstro horrendo que apenas destruísse seu corpo). O fim de 1984 de Orwell parece refletir o fim de O Processo, onde um final triste é feliz justamente por ser triste. Mas a obra que mais se inspirou em Kafka deve ter sido "Entre Quatro Paredes" de Sartre, onde um inferno são todos ao redor. K. não é nenhum santo, pois da mesma forma que tudo ao seu redor o oprime, ao mesmo tempo também é o verdugo na vida de todos que passa pela vida.
Enfim, tem a visão clássica em que Kafka quis reproduzir os processos burocráticos administrativos/judiciais. A burocracia é uma espécie de superstição, com rituais e quebrar o protocolo e sacrilégio que põe conta o indivíduo contra forças cósmicas ou processuais que o afligem. Tem de seguir o rito, mesmo sabendo que não vai ter resultado algum. Se eu fosse K. desistiria de correr contra o processo e aceitaria as consequências e me entregaria com alegria à prisão, mas provavelmente não poderiam me prender, pois isso iria requerer outro processo administrativo autorizando minha prisão. O Processo é viver nesse limbo jurídico que estagna o ser.