Luiz Pereira Júnior 21/04/2022
O mais terrível dos Coringas...
Primeiramente uma observação importante em relação à edição de 2014 da Editora Estação Liberdade (não sei se o mesmo ocorre na edição da Editora Martin Claret): de colocar um texto que conta todo o enredo do livro (até mesmo o destino final dos protagonistas) logo no início da obra. Tudo bem, é uma Introdução, como o próprio nome diz, mas, se é esse o problema, mude-se o nome e coloque-se a tal Introdução no final. Em outras palavras: imagine-se pagando 60 reais para assistir a um filme e logo nos primeiros dez minutos todo o enredo é resumido e contado aos telespectadores. Ou, pior ainda, imagine-se vendo o primeiro capítulo de uma novela e descobrir que esse primeiro capítulo faz o resumo completo da novela, até mesmo o último capítulo com o destino final dos protagonistas! Com todo o respeito, senhores editores, essa foi uma das decisões mais ............... que eu já vi em uma publicação (completem a lacuna a seu gosto e vontade).
Em relação à obra em si, é um clássico talvez seja a melhor e mais sucinta definição que eu possa imaginar para ela. Um enredo inquietante, personagens bem construídas, linguagem completamente adequada ao contexto (vocabulário culto, mas sem chegar ao irritante hermetismo daqueles escritores que parecem apenas querer deslumbrar o leitor com seu léxico ou com suas experimentações vocabulares), detalhes que acabam por fazer toda a diferença (sim, eu sei que é um paradoxo), informações beirando o curiosismo mas que retratam os terrores e o magnífico de uma época, muitas e muitas frases que podem ser marcadas como pensamentos ou aforismos... É um clássico, como já disse. Menos conhecido que “Os miseráveis” e “O corcunda de Notre-Dame” do mesmo escritor, porém até mesmo mais profundo e impactante que esse último.
Sim, eu sei dos defeitos do livro. Melhor dizendo, eu sei não dos defeitos, mas do que pode não agradar ao leitor contemporâneo, ao leitor iniciante, ao leitor jovem acostumado aos livros de séries em que cada livro parece repetir o outro (e talvez seja essa a ideia: a fórmula deu certo, então repita-se a fórmula). Enormes trechos descritivos, muitas repetições usando-se palavras diferentes, digressões que acabam por adiar a trama principal do enredo (péssimo para os leitores que gostam de ação e mais ação), personagens maniqueístas (não tem como negar isso), a mesma linguagem usada para todos os personagens não importa a classe social ou a faixa etária em que se encontrem (sim, também sei que isso contradiz o que disse no parágrafo anterior, mas o vocabulário reflete o ideal de todos os personagens falarem do mesmo modo – uma característica do Romantismo: basta lembrar das falas de Inocência, Peri, Iracema, Augusto de “A Moreninha”). Como eu disse, é um clássico e, sem preconceitos nem generalizações, um clássico não é necessariamente (acredito que nunca seja) uma leitura fácil e meramente divertida...
E o enredo: um garoto é abandonado em terra firme por um grupo que fugirá em um oceano tempestuoso. O barco afunda, o garoto caminha na neve e encontra o cadáver de uma mulher e um bebê (menina) tentando mamar nele. O garoto (Gwynplaine) recolhe a menina e a carrega consigo, sendo adotados, depois de enorme sofrimento, por um saltimbanco e seu lobo de estimação. Com o passar do tempo, descobre-se que Gwynplaine é o lorde da família mais nobre do Reino Unido, logo abaixo da posição da rainha. O mais importante eu ainda não o disse: o rapaz era filho de um inimigo do rei e foi dado para um dos grupos dos chamados comprachicos. E o que faziam esses grupos? Compravam crianças e as desfiguravam para vendê-las aos circos de horrores. No caso de Gwynplaine, os comprachicos cortaram a boca do menino de forma a fazer com que ele passasse a exibir eternamente um riso em sua face...
Sim, já sei o que você está pensando. Pelo que eu pesquisei, “O homem que ri” deu origem a um filme homônimo e, posteriormente, o personagem se transformou no famosíssimo Coringa, que, como todos sabem, tem a origem de seu sorriso ao cair em um tanque de ácido, que deformou seu rosto. E por que essa diferença na origem do sorriso? Na verdade, até que é bem óbvio... A DC Comics jamais faria filmes para o grande público (adeus, bilhões de dólares) em que uma criança tem a boca retalhada de orelha a orelha , exibindo uma máscara cômica mas de inacreditavelmente profundo sofrimento interior...
A pergunta de sempre: vale a pena? Sem dúvida, mas saiba onde está se metendo. Um livro clássico é atemporal – e o atemporal não quer dizer necessariamente que você encontrará tudo o que deseja, tudo o que pensa, da forma como pensa e deseja e que se emocionará como à época em que foi publicado. E talvez seja esse mesmo o segredo do clássico: permanecer clássico mas de uma forma diferente a cada leitura que façamos dele...