Leila de Carvalho e Gonçalves 14/03/2021
O Jardim
A angolana Djaimila Pereira de Almeida é uma das mais promissoras vozes da literatura lusófona. Para se ter ideia, aos 28 anos, ela foi vencedora do Prêmio Oceanos com o livro Paraíso e no ano ano seguinte, 2020, travou o segundo lugar na mesma premiação, dessa vez com uma novela.
Intitulada A Visão das Plantas, ela reúne reflexões filosóficas e uma invulgar beleza poética, para apresentar em 80 páginas, uma narrativa bastante peculiar sobre as condições que uma pessoa deve impor a si mesmo para poder sobreviver.
Sua história foi inspirada num trecho de outro livro, Os Pescadores de Raul Brandão, que se distingue por ser um dos preferidos de Djaimila. Nele, o escritor comenta ? en passant ? sobre as pessoas que conheceu, quando era levado pela mão até ao colégio. Entre elas, está o capitão Celestino:
?Tendo começado a vida como pirata a acabou como um santo, cultivando com esmero um quintal de que ainda hoje não me lembro sem inveja. Falava pouco. ...A sua vida anterior fora misteriosa e feroz. De uma vez com sacos de cal despejados no porão sufocara uma revolta de pretos, que ia buscar à costa de África para vender no Brasil. Outras coisas piores se diziam do capitão Celestino? Mas o que eu sei com exactidão a seu respeito é que para alporques de cravos não havia outro no mundo.?
Cravos cultivados pelo capitão no quintal da casa onde nasceu e partiu ainda adolescente, para seguir uma vida de aventuras. Seu regresso, já idoso, foi marcado pela má fama que o precedera, provocando medo e distanciamento dos habitantes da vila. Entretanto, isto jamais lhe incomodou, pois apenas nutria uma certa simpatia pelas crianças, ?criaturas perfeitas, sem dores, ressentimentos ou crendices?.
Em linhas gerais, a novela descreve os últimos anos de vida desse capitão. Uma lenta decadência enquanto ele constrói um jardim e esse convívio com a natureza, algo que realmente lhe apraz, assume contornos cada vez mais complexos, conforme sua cegueira avança e a demência embaralha as lembranças.
?As plantas viam?no como um olho de vidro vê a passagem das nuvens. Elas e o seu amigo eram seiva da mesma seiva, da mesma carne sem dó nem piedade. Atrás das costelas, no lugar do coração, o corsário tinha uma planta. E, por tudo isso, não o julgavam.?
Por sinal, essa cegueira pode ser entendida como uma metáfora para o afastamento das culpas de Celestino, condição que lhe permite uma consciência tranquila e pende sobre uma temática recorrente na obra de Djaimila: as relações assimétricas que não deixam claro com quem está o poder, no caso, quem domina e quem está sendo dominado.
?Não era mais Celestino que tomava conta das flores, mas elas que tomavam conta dele. Tinha medo delas, medo de que o agarrassem pelas pernas e o estrangulassem...
Quase fora deste mundo, o jardineiro deixara de ser o jardim, porque o jardim se tornara jardineiro do jardineiro.?
Curiosamente, A Visão das Plantas é uma história isenta de julgamentos que multiplica questões ao invés de respondê-las, permitindo ao leitor explorá-la sob distintas perspectivas. Para tanto, a escritora escolheu escapar do óbvio, focar no passado do protagonista, para priorizar sua última realização: um jardim. Essa escolha ocorreu após Djaimila ver numa revista a fotografia de um homem cego no jardim que ele mesmo cultivava e quem quiser conhecê-la, a imagem está na capa da edição portuguesa do livro; já na edição brasileira, ela foi substituída provavelmente por conta da lei dos direitos autorais.
Enfim, se você pretende escapar do óbvio como Djaimila, recomendo.
?O quintal amanhecia sob o nevoeiro salgado. Aos poucos, a neblina levantava, revelando a cor das flores. Os borrões grená, amarelos e turquesa, esbatidos na palidez aguada, sem deixarem perceber o contorno das pétalas e a realidade dos caules, pareciam planar na atmosfera. Às vezes, uma auréola teimosa de nuvem mantinha?se sobre os canteiros depois de a névoa se ter dissipado. Celestino, emergindo da bruma, contemplava a condensação do tom das suas barbas. Soprava o fumo da cigarrilha para cima da auréola que, perfurada, se arrepiava com o bafo quente e se retraía como um balão tímido tocado por uma agulha. A neblina trazia até ao jardim o cheiro das algas e das ondas, cujo ronco, nos dias de tempestade, chegava até à casa. Era quando o quintal se fazia um castelo de areia, jardim erguido à beira?mar. E o velho capitão regressava por instantes à infância de menino na praia. Se começara a vida brincando aos marinheiros, a atirar?se de cabeça do pontão, acabava?a brincando aos jardineiros.? (posição 46)