Paulo Silas 26/12/2018Vida e feitos de Orwell narrados de um modo próprio, característico, e por que não peculiar, estão presentes em "A Vitória de Orwell", do notório Christopher Hitchens. Eric Arthur Blair é retratado evitando qualquer tipo de tendencionismo - não há ataques ou defesas contra o escritor (ou sua produção jornalística e literária) pautadas em vieses ideológicos. Não se diz que Orwell foi isso ou aquilo de modo a situá-lo a algum ideal de pertencimento que não intentado pelo próprio. Não se fala de Orwell com base em leituras próprias que tendem a confirmar uma hipótese que já era tida como certa antes mesmo de se iniciar a pesquisa. Não há engodo ou tentativas de defesas rasteiras sobre o pensamento de Orwell. O que há é uma leitura séria e comprometida com aquilo que foi Orwell a partir suas próprias ideias, manifestações e escritos. Em que pese certamente o autor, Hitchens, apareça ao falar de outro, tem-se que é notável o esforço e o comprometimento do jornalista ao retratar o mais fielmente possível a figura objeto de sua investigação, o que é perceptível pelas linhas que compõem cada página da obra. O que se tem, portanto, é um livro sério que busca estabelecer um traçado fidedigno da vida e obra de Orwell. E Hitchens alcança a sua pretensão a contento.
Não se trata de uma biografia. O que Hitchens faz nessa obra é uma leitura crítica e interpretativa de George Orwell, analisando os seus escritos e o contexto em que viveu e escreveu o autor do famoso "1984". Orwell é situado em meio às diversas defesas efusivas e aos fervorosos ataques que sofreu enquanto em vida e depois dessa ter findado - permanecendo suas obras como o seu legado. Para fazer justiça ao que (e quem) de fato foi Orwell, Hitchens organizou os capítulos do livro de acordo com as temáticas que mais lhe foram (e são) caras, capitulando assim a obra em "Orwell e a esquerda", "Orwell e a direita", "Orwell e as feministas", "generosidade e ira:os romances" e demais nesse estilo. A proposta, portanto, se dá em enfrentar os principais pontos e contrapostos com relação ao pensar, ao viver e ao escrever de Orwell. O resultado conclusivo disso tudo, pesquisa que é trabalhada e exposta com muito esmero num tom característico de Hitchens, é que Orwell foi (e é) vitorioso em se manter fiel àquilo que acreditava, não merecendo ter maculada a sua imagem para além daquilo que de fato teria feito ou pensado, ou seja, merecendo ser afastadas todas as tentativas de enquadramento de Orwell em algo a que não pertenceu ou pensou.
"A Vitória de Orwell" pode ser então entendida como uma obra vitoriosa. Vitória de Hitchens, ao constituir êxito em sua empreitada jornalístico-literária, vitória da obra, por se tratar de um escrito primoroso a respeito de Orwell, e vitória de Orwell, por tudo aquilo que representou (e ainda representa) para o mundo. Nesse sentido, cabe aqui a transcrição de um trecho que muito bem representa o que está a se dizer: "o Orwell que alguns consideram tão inglês quanto o rosbife e a cerveja morna nasce em Bengala e publica seus primeiros artigos em francês. O Orwell que sempre desgostou dos escoceses e do culto à Escócia estabelece seu lar nas (reconhecidamente despovoadas) Hébridas e é um dos poucos escritores de sua época a antever a potencial força do nacionalismo escocês. O jovem Orwell que tinha fantasias sobre enterrar uma baioneta nas tripas de um sacerdote birmanês torna-se um paladino da independência da Birmânia. O igualitário e socialista vê simultaneamente a falácia da propriedade estatal e da centralização. O execrador do militarismo torna-se proponente de uma guerra de sobrevivência nacional. O altivo e solitário aluno de internato de elite dorme amontoado com vagabundos e mulheres da vida e força-se a suportar piolhos, penicos e detenções. O extraordinário nessa nostalgie de la boue é ser vivenciada com autopercepção humorística e sem nenhum vestígio de abjeção ou mortificação religiosa. O inimigo do jingoísmo e do cristianismo vociferante é autor de textos elegantíssimos sobre poesia patriótica e tradição litúrgica".
É diante disso que se pode dizer que Orwell não pertenceu, mas foi - e a obra evidencia muito bem isso.