spoiler visualizarHelena.Seribelli 06/12/2021
Notas sobre o luto
?A notícia é como um desenraizamento cruel. Ela me arranca do mundo que conheço desde a infância.?
?O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras.?
?e dentro do corpo uma sensação de eterna dissolução. Meu coração me escapa ? meu coração de verdade, físico, nada de figurativo aqui ? e vira algo separado de mim, batendo depressa demais num ritmo incompatível com o meu.?
?e nós agora rimos ao lembrar do meu pai, mas em algum lugar por trás desse riso existe uma névoa de incredulidade. O riso vai se apagando. O riso se transforma em choro, que se transforma em tristeza, que se transforma em raiva. Estou despreparada para a raiva descomunal e avassaladora que sinto. Sinto-me inexperiente e imatura diante desse inferno que é a tristeza.?
?Minha raiva me assusta, meu medo me assusta, e em algum lugar há também vergonha: por que estou sentindo tanta raiva e tanto medo? Tenho medo de ir para a cama e acordar; tenho medo do amanhã e de todos os amanhãs que virão depois. Sinto-me tomada por um estarrecimento incrédulo com o carteiro que continua passando, com as pessoas que continuam me convidando para dar palestras não sei onde, e com os alertas de notícias que surgem regularmente na tela do meu celular. Como é possível o mundo seguir adiante, inspirar e expirar de modo idêntico, enquanto dentro da minha alma tudo se desintegrou de forma permanente??
?O luto expõe novas camadas em mim, raspando escamas de meus olhos. Arrependo-me das minhas antigas certezas: Você certamente deve vivenciar seu luto, falar a respeito, encará-lo, atravessá-lo. As certezas arrogantes de alguém que ainda não o conhece.?
?Não consigo pensar muito, não me atrevo a me aprofundar demais nos pensamentos, do contrário serei derrotada não apenas pela dor, mas por um niilismo acachapante, um ciclo de pensamentos do tipo que não adianta, de que adianta, nada adianta nada. Eu quero que haja um motivo, mesmo sem saber ainda de que isso consiste. Segundo Chuck, existe certa graça na negação, palavras que fico repetindo para mim mesma. Essa negação, essa recusa de olhar é um refúgio. É claro que fazer isso é também uma forma de luto, de modo que eu estou desvendo debaixo da sombra oblíqua do ver, mas imagine a catástrofe que seria um olhar direto e frontal. Muitas vezes há também a ânsia de sair correndo, correndo, a ânsia de se esconder. Mas nem sempre posso correr, e todas as vezes em que sou forçada a encarar de frente a minha dor ? ao ler o atestado de óbito, ao escrever o rascunho de um anúncio fúnebre ? sinto um formigamento de pânico.?
?A culpa me corrói a alma. Penso em todas as coisas que poderiam ter acontecido e em todas as formas como o mundo poderia ser transformado para impedir o que aconteceu no dia 10 de junho, para fazer isso desacontecer.?
?Esquivo-me das condolências. As pessoas são gentis, bem-intencionadas, mas saber disso não torna suas palavras menos irritantes.?
?Ter um amor arrancado, sobretudo quando isso é inesperado, e depois ouvir que se deve recorrer às lembranças. Em vez de virem me acudir, minhas lembranças trazem eloquentes pontadas de dor que dizem: ?É isso que você nunca mais vai ter?. Às vezes elas trazem o riso, mas um riso que é como carvões em brasa que logo voltam a se transformar nas chamas da dor.?
?O luto não é etéreo; ele é denso, opressivo, uma coisa opaca. O peso é maior de manhã, logo depois de acordar: um coração de chumbo, uma realidade obstinada que se recusa a ir embora. Eu nunca mais vou ver meu pai. Nunca mais. É como se eu só acordasse para afundar cada vez mais. Nessas horas tenho certeza de que nunca mais quero encarar o mundo.?
?Na verdade essa postura no início é uma proteção, um jeito de evitar mais dor ainda, porque estou esgotada de tanto chorar, e falar sobre o acontecido significaria chorar outra vez. Mas depois é porque eu quero ficar sozinha com meu luto. Quero proteger ? esconder? de quem? ? essas sensações desconhecidas, essa estonteante sequência de montes e vales. Há um desespero para me livrar desse fardo, e depois uma ânsia igualmente forte de abrigá-lo, de segurá-lo bem apertado. Será possível ser possessivo em relação à própria dor? Quero que a dor me conheça, quero conhecê-la também.?
?Parte da tirania do luto é que ele impede a pessoa de recordar as coisas importantes.?
??Nunca mais? veio para ficar. ?Nunca mais? parece muito injusto e punitivo. Eu vou passar o resto da vida com as mãos estendidas tentando alcançar coisas que não estão mais ali.?
?A dor era a celebração do amor, aqueles que sentiam dor verdadeira tinham sorte de ter amado?
?Será que o amor traz, nem que seja de forma inconsciente, a arrogância ilusória de achar que nunca vamos ser tocados pela dor??
?A felicidade se torna uma fraqueza, porque deixa a pessoa indefesa diante da dor.?
?As camadas da perda fazem eu me sentir fina como um papel.?
? É um ato de resistência e uma recusa: é a dor lhe dizendo que acabou, e o seu coração dizendo que não; a dor tentando encolher seu amor para deixá-lo no passado, e o seu coração dizendo que o amor é no presente.?
?Um dos muitos componentes notáveis do luto é a criação da dúvida. Não, eu não estou imaginando coisas. Sim, meu pai era mesmo maravilhoso.?