Leila de Carvalho e Gonçalves 28/10/2021
Reinvenção De Poema Épico
Finalista em 2020 do Booker International Prize, ?As Aventuras de China Iron? é o quarto romance da escritora argentina Gabriela Cabezón Cámara. Recentemente publicado no Brasil, trata-se de uma grata surpresa, à medida que se revela uma narrativa ousada, subversiva e feminista, ao contrapor com humor e leveza uma conjuntura rígida, conservadora e patriarcal.
Em linhas gerais, ele é a reinvenção de uma obra seminal da literatura argentina: o poema épico ?El Gaucho Martín Fierro?, de autoria José Hernandez, cuja primeira publicação data de 1872. Neste caso, a esposa adolescente do protagonista, que é uma mera menção no original, desponta como heroína e narradora.
Órfã, sem nome e tratada apenas por China, palavra usada para designar qualquer menina, mulher ou criada, ela abandona intempestivamente o pobre casario onde vive, deixando para trás uma rotina de servidão e violência, após Fierro e outros homens serem recrutados pelo Exército, para defender a região fronteiriça com o Território Indígena.
A partir daí, a jovem inicia uma jornada de autodescobrimento, tendo a princípio a companhia de Estreya, seu cão, e de Liz, uma escocesa que está disposta a descobrir para onde fora enviado seu marido e resgatá-lo, a fim de tomarem posse de uma estância que vieram administrar.
Tramada pela memória, esta narrativa não deve compreendida ao pé da letra. Tal qual China afirma logo no início do livro, ?é difícil saber se aquilo que se recorda, foi vivido ou não passa de um relato feito, refeito e polido como uma pedra preciosa ao longo dos anos e, apesar de resplandecer, está morto como uma pedra?. Por sinal, de acordo com Ellen Peirson-Hagger, editora cultural do New Statesmen, tal ausência de confiabilidade também pode ser encontrada nos episódios mais fantasiosos de clássicos como ?Tom Jones?, de Henry Fielding, ou ?A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy?, de Lawrence Sterne.
Exibindo uma linguagem visceral, esta história pode ser resumida num romance de estrada dividido em três partes. A primeira, O Deserto, distingue-se pelo cunho homoerótico e gira em torno de duas mulheres destemidas em brusca de um novo estilo de vida. A segunda, O Fortim, prima pelo clímax orgiástico e funciona como uma metanarrativa em que o leitor é apresentado a uma inesperada personagem, o poeta José Hernandez, cuja presença ? como um administrador alcoólatra, violento e racista ? marca indelevelmente a história. Já a última parte, Terra Adentro, traça um pacto com o Fantástico, enquanto China, Liz e Rosario, um gaucho proscrito que passa a lhes fazer companhia, penetram no Território Indígena e fazem contato com a misteriosa tribo Iñchiñ.
Finalmente, ?As Aventuras de China Iron? propõe uma vida mais livre, na contramão das convenções sociais. Em paralelo, também aborda a desconstrução de um país pelos olhos de uma adolescente, ou seja, a expulsão dos indígenas e a reivindicação dessas terras por parte dos colonizadores e até a própria Liz é parte do problema, pois, escocesa, viera fazer fortuna nos pampas argentinos junto com o marido. A bem da verdade, China não tarda a reconhecer que esse problema não é apenas do seu país, ?pois as toalhas com as quais se enxuga, vêm dos fabricantes de Lancashire, na Inglaterra, mas antes disso, a matéria prima, o algodão, veio do Delta do Mississippi e dos estalos do chicote nas costas dos negros nos Estados Unidos?. Boa Leitura!
?... Quase cada coisa que eu tocava conhecia mais o mundo que eu e era nova para mim.? (China Iron, página 37)
Nota: Adquiri o e-book e recomendo.