Thyago Costa 02/04/2022
Travessias e Recomeços
Um dos aspectos mais proeminentes da prosa contemporânea é a capacidade de ilustrar a vivência do Outro através de uma narrativa que deixa de lado o Eu e abraça a alteridade. É uma "exotopia", de olhar para o Outro. É também um "devir", o tornar-se o Outro. É o que Sartre indica na construção da pessoa como Sujeito em relação ao Outro. Refletindo sobre isso, o grande acerto de Marcello Quintanilha em sua obra é esse domínio em mergulhar nesse entre-lugar literário, em construir mundos e nos apresentar, com vivacidade e crueza, memórias do Outro. As memórias de Márcia.
Márcia é atravessada por dores. Muitas invisíveis, que talvez nem ela sinta, mas que cobram o preço na hora certa. Ao descobrir uma modinha chamada "Escuta, Formosa Márcia" pergunta ao companheiro, Aluísio, se é formosa. A resposta é o silêncio e o abraço do quarto escuro. Na rebeldia da filha, Jaqueline, esbarra no obstáculo da violência em suas várias instâncias. Peito que dói pela mágoa. Músculos que estremecem em um tapa interrompido. Quando a filha se envolve com o crime organizado, Márcia se vê de mãos atadas, e em toda sua complexa relação, não pode dar as costas. Márcia é mãe. E teme fantasmas. Teme os fantasmas que assombram tantas mães que tiveram a dor do luto negada.
Por trás de uma cortina de diálogos vivos e cheios de movimentos, festivos em oralidade, Quintanilha traça o caminho de Márcia em uma busca por quietude. Em uma vida sem fugas. Sem violências. Busca por uma vida de cores, como tantas que são pinceladas em cada página, em murais flutuantes de um mágico real, ou de uma realidade que poderia ser mágica. Cada fala é uma construção minuciosa de cenários, personalidades, tramas e consequências. A reviravolta não é fantasiosa. Vivemos num mundo de absurdos. Mas também de sonhos e, principalmente, de recomeços.
"Escuta, Formosa Márcia" foi publicado em 2021, pela Editora Veneta, e no dia 19/03 ganhou o Fauve D'or (prêmio de Melhor Álbum) no Festival Internacional de Angoulême, um dos maiores festivais de quadrinhos do mundo. Márcia atravessou o oceano. Incontáveis Márcias viajaram pelo mundo. E para todas elas eu posso responder: sim, vocês são imensamente formosas!