riamarialuiza 26/08/2024
Você nunca esmaecerá, Carolina
Lá pela página 180, no dia 6 de dezembro de 1960, ela diz:
"Tenho a impressão que sou ferro banhado a ouro. E um dia o banho de ouro esmaeçe e eu volto a origem natural - O ferro ha de ser sempre ferro! [...]".
Mas você, Carolina Maria, nunca esmaecerá.
No primeiro volume de "Casa de Alvenaria", lemos os anseios, medos, inseguranças, tristezas, empolgamentos, cansaço, felicidades e desejos de Carolina Maria de Jesus, no auge da publicidade em torno de sua figura. Carolina era escritora preta, mãe, sonhou com essa casa de alvenaria e os filhos "reinam" na correria da vida em Osasco.
A vida de Carolina em 1960 muda drasticamente, não mudam a exploração e os preconceitos, embora lá pelo final do ano possa sonhar com a compra de uma casa mais próxima ao centro da maior metrópole do país. Ela viaja para várias partes do Brasil e ora se encanta, ora se espanta com as agruras da vida dos pobres e dos racializados nesse país tão desigual.
Naquele tempo, Carolina queria mais tempo para ler, para escrever poesia, para escrever romances, mas Audálio Dantas queria repetir o sucesso do diário "quarto de despejo" e, assim, ela fala, incansavelmente, dos dias dessa publicidade em torno de seu nome, de sua vida, de sua escrita tão verdadeira. E é impossível não se incomodar com a maneira que Audálio a explora. Ela também conhece escritores e políticos dos estados que visita, fala dos burgueses (e do medo de criticá-los e ser perseguida por eles) e não deixa de escrever suas impressões sobre as damas que se sentavam na mesa com ela nos jantares finos, mas que eram tão diferentes dela:
"[...] quando estou entre os brancos, tenho a impressão que eles detestam minha presença, ou talvez seja, a não estar habituada com estas damas, que não sabem o que é ter fome" (p. 137).
A fome volta à mente quando come bem. Seu papel político é frisar o horror do alto custo de vida. Ela compra os "gêneros alimentícios", seus filhos enfim comem frutas que não saíram dos lixos, mas não deixa de se preocupar com o custo de vida extremamente caro.
Em suma, demorei pra conseguir ler esse. Sabia que seria difícil digerir, mas Carolina encanta com a profundeza de seus escritos e, por vezes, me vi também sorrindo com sua magnitude. Mulher, humana, complexa, bonita, que deseja, que cria, que escreve e que é mais do que um rótulo. Me arrepiei quando escreveu sobre o amor pelos livros, mais uma vez, e quando falou da questão agrária do Brasil que via pelos ares e pelas rodovias em suas viagens.
Em 3 de dezembro, disse sobre "os vultos federaes que ganham salarios elevados do Tesouro Nacional":
"[...] Eles são os causadores da existencia das favelas. Eles não combatem os prêços elevados podem comprar são os médiadores da desgraça no pais. [...] O que me horrorisa, é saber que existe entes humanos, que passam privações num país onde as terras cultivaveis estão abandonadas impedindo aos pobres que plante para comer.
Com o custo de vida elêvado a massa proletária vae se elevando e um dia a massa pobre duplica-se na força e na sapiência porque, so o sábio é forte. Ha de lutar com a massa rica e domina-los. E as terras ha de ser dos pobres para eles plantar." (p. 169)
Quanta sabedoria, Carolina. Quanta emoção nas palavras.
Repito: você nunca esmaecerá!
E, por fim, há que se falar: o prefácio de Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus é incrível.