Henrique Fendrich 15/11/2021
Hermann Ungar é um dos grandes escritores da humanidade e é inexplicável que nem mesmo os altos elogios feitos por Thomas Mann tenham sido suficientes para que alguma editora brasileira se convencesse da conveniência de publicá-lo também por aqui. "Os mutilados", que existe em Portugal, é a sua incrível obra mais famosa, mas vejo agora neste "Chicos y asesinos" que ele já era um escritor admirável antes de publicá-la.
São basicamente duas novelas, ambas escritas em primeira pessoa por personagens que tiveram infâncias atípicas e que, por conta disso, tornam-se presas de seus dramas e de seus traumas psicológicos. Porque o Hermann Ungar é essencialmente psicológico, e nisso ele se assemelha não apenas ao seu compatriota Kafka, mas também aos russos.
A segunda novela é a minha favorita. "Historia de un asesinato" é isso que o nome sugere, mas é formidável o modo como vamos percebendo as perturbações não apenas do infeliz personagem principal, mas de todos à sua volta, até chegar à consumação do homicídio.
O personagem principal é filho de um médico militar que foi afastado do exército depois que se envolveu em um escândalo de corrupção. Mudou-se então para a sua terra natal e ali passou a ser tratado como "general", sobretudo por conta do seu barbeiro, um corcunda que gostava de se divertir às custas dos outros. O apelido "general" era uma galhofa, mas depois de algum tempo o homem passou a assumi-o com orgulho e inventar histórias sobre os seus feitos de guerra, sempre estimulado pelo sádico barbeiro corcunda.
Ao mesmo tempo, o "general" tinha um medo terrível de que alguém viesse a descobrir que, na verdade, não passava de um médico expulso do exército por corrupção. Quando chega um forasteiro naquela pequena aldeia, o homem só falta pirar de tanto medo que sentia, tanto mais porque o barbeiro explorava aquela situação, dando a entender que o forasteiro havia vindo até ali fazer algumas investigações sobre algum crime cometido por um ex-oficial.
Em meio a isso, há os próprios dramas do personagem que conta a história, que mantém uma relação complexa com o pai e com o barbeiro e, sendo ele próprio fraco e doentio, não sendo bem sucedido em uma escola de cadetes, volta o seu ódio justamente contra os fracos e doentios, além de cometer terríveis crueldades contra os gatos da região. Depois de certo episódio, porém, o rapaz vê no forasteiro um aliado, mas as coisas não terminarão bem.
Novela excelente!
A primeira novela é "Un hombre y una muchacha". Ali, o personagem é um órfão, criado em uma espécie de asilo na companhia de três velhos e que, ao chegar à puberdade, começa a se sentir doentiamente atraído pela criada do lugar. Mesmo quando chega a idade de sair do asilo, ele tenta de tudo para conquistar a mulher, mas ele resiste a tudo silenciosamente.
O homem vai à América, chega a fazer fortuna (inclusive se valendo de meios bem ilícitos) e volta para a sua terra natal em busca da criada. Leva-a consigo, mas a mulher continua lhe resistindo e então ele resolve humilhá-la e rebaixá-la de todas as maneiras possíveis, para fazer com que ela sentisse o seu poder, chegando a ponto de vendê-la a um prostíbulo.
Depois perde a mulher de vista, por mais que tente encontrá-la, até que um dia lhe aparece um bebê, o filho dessa mulher, que havia morrido e pediu que o enviassem a ele. O homem decide fazer o bebê sofrer tudo o que ele próprio havia sofrido e o manda para o mesmo asilo em que passou a infância. Mas as coisas não sairão como o planejado e ele não perde por esperar o bem que, involuntariamente, esse filho virá a lhe fazer quando crescer.
Duas histórias intensas, muito bem escritas e articuladas, com farto material psicológico. Um escritor fantástico!