Resenhas - Fogo Amigo

Tórtoro 15/10/2012

FOGO AMIGO

A leitura de Fogo Amigo, de A.B. Yehoshua lembra um pouco o filme Monsieur Verdoux, de Chaplin, na década de 30, em que duas estórias correm paralelas: a de um caixeiro-viajante e de um bem-sucedido homem de negócios.
Entre uma vela e outra, acesas no tempo festivo do Hanukah, numa composição contrapontística, durante sete dias, em sete capítulos, Yehoshua conta um pouco da vida de um casal israelense de meia-idade, vivendo por sete dias, separados por quilômetros de distância, mas unidos por uma irrupção incontrolável da memória e da ancestralidade.
Yaári está às voltas com os cuidados exigidos pela doença do pai e as visitas devidas aos filhos e netos, enquanto os uivos lancinantes emitidos pelo poço de elevadores de um edifício ultramoderno recém-construído em Tel Aviv desafiam sua reputação de bem sucedido engenheiro projetista. Sua esposa , Daniela, professora do ensino secundário, aproveita o feriado escolar para viajar até um lugarejo perdido na savana da Tanzânia, procurando no silêncio de Yirmiyáhu — ex-cunhado decidido a cortar todos os vínculos com Israel —, os traços fugidios da presença da irmã morta.
A intensiva carga simbólica dos eventos aparentemente banais da trama do romance aponta para a universalidade da arte narrativa de A.B. Yehoshua.
Fogo amigo permite ao leitor viver a vida de personagens em locais diametralmente diferentes, e fazer comparações entre nós e outros povos, distinguir culpas fictícias de culpas reais.
Durante os poucos dias que levei para ler as quase 400 páginas, convivi com os guinchos de elevadores — e os lamentos das numerosas famílias israelenses dilaceradas pela violência da guerra, os misteriosos ruídos que perturbam a frágil tranqüilidade do feriado de Yaári — e, ao mesmo tempo, percorri desoladas paisagens africanas, onde a ancestralidade arqueológica da espécie humana convive de modo intrigante com as sombras do passado da pequena família israelense, perturbada pela morte de um de seus membros pelo “fogo amigo” das forças de ocupação na fronteira da Cisjordânia.
Na realidade, Chaplin fala sobre o Estado , e Yehoshua fala sobre o ser humano.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br

Daniela 14/07/2019

Distância íntima
A história tem como protagonistas o casal Daniela e Amotz, que estão justos a quase 40 anos, e com essa convivência construíram uma relação de proximidade e dependência. Entretanto, como nem tudo é perfeito, durante a semana que Daniela passa na África, com o cunhado viúvo, conseguimos perceber os eixos de instabilidade dos dois. Daniela, apesar da idade, se mostra uma mulher que luta para ser mais madura ainda trazendo consigo características da época de adolescente, enquanto que Amotz precisa descobrir como é passar os dias sem a mulher ao lado para conversar e abrir-se. Essa distância do casal é interessante porque dar margem para compreendermos que os conflitos relacionais sempre existem, ainda que para pessoas que aparentemente vivem uma perfeita comunhão. Tendo como pano de fundo a morte do sobrinho por fogo amigo, a obra de mesmo nome nós faz refletir sobre temas como luto, revolta, remorso, rancor, isolamento, repulsa a própria identidade, entre outros. A leitura é super tranquila e de fácil entendimento, tem-se aqui um refinamento que faz parte do talento e da técnica do autor para narrativas. Para quem quer ler algo diferente, vale a pena, pois o que mais chama atenção no livro é forma como foi escrito, mas do que a história em sim.