Carla Verçoza 29/08/2021
Que leitura diferente e excelente!
"Não sei o que faz sofrer mais: se é pensar só nas lembranças boas e deixar brotar a nostalgia, tão pontiaguda, e essa ansiedade que nunca é saciada e que embriaga a alma; ou tomar banho nos riachinhos de pensamento que me levam às lembranças tristes, ruins e turvas, e me afogam o coração e me deixam ainda mais órfã, ao pensar que meu homem não era bem o anjo que eu coroo. E que não me amava tanto, como de fato nenhum homem é capaz de amar tanto assim. Meu corpo estava tão pronto. Tão cheio de medo e, ao mesmo tempo, tão cheio de ânsia, tão cheio de amor, que encurralava os temores, como se fossem um punhado de morcegos"
Canto eu e a montanha dança é um livro peculiar, sensível, poético, que traz diversos narradores, mas não somente narradores humanos. A terra, o céu, os bichos também contam suas histórias. Cada narrador nos apresenta suas visões dos acontecimentos, que vão se interligando em algum momento e construindo o todo para o leitor.
A história parte de um evento com Domènec, em um povoado nos Pirineus catalães e segue contando o desenrolar da vida das outras personagens, tudo muito bem descrito e ambientado, cada capítulo tem sua voz própria, também traz bastante do folclore e lendas.
"Não sei o que faz sofrer mais: se é pensar só nas lembranças boas e deixar brotar a nostalgia, tão pontiaguda, e essa ansiedade que nunca é saciada e que embriaga a alma; ou tomar banho nos riachinhos de pensamento que me levam às lembranças tristes, ruins e turvas, e me afogam o coração e me deixam ainda mais órfã, ao pensar que meu homem não era bem o anjo que eu coroo. E que não me amava tanto, como de fato nenhum homem é capaz de amar tanto assim. Meu corpo estava tão pronto. Tão cheio de medo e, ao mesmo tempo, tão cheio de ânsia, tão cheio de amor, que encurralava os temores, como se fossem um punhado de morcegos."
A passagem do tempo, as memórias, os acontecimentos da vida que fogem ao nosso controle... belíssimo!
Terminei a leitura emocionada por diversos motivos e feliz por ter tido a oportunidade de ler essa obra. Espero que muitas pessoas também a leiam!
"E a mulher deixa de ser mulher e se torna uma viúva, uma mãe. Deixa de ser o centro de sua vida, deixa de ser a seiva e o sangue, porque a obrigaram a renunciar a tudo o que queria. Aqui, jogue tudo aqui, todas as coisas que você desejava, aqui, no meio do caminho, nessa margem, as coisas que você pensava. As coisas que você amava. E olha que eram bem escassas, pouca coisa. Esse homem e essa montanha. E fazem a mulher querer uma vida pequena. Uma vida mirrada, como uma pedrinha bonita. Uma vida que caiba no bolso. Uma vida como um anel, uma avelã. Não dizem a ela que é possível escolher coisas que não sejam pequenas. Não contam que as pedras pequenas se perdem. Elas escapam pelo furo de um bolso. Nem que, se a vida for perdida, não dá para escolher outra. Que pedrinha perdida é pedrinha perdida. Livre-se também do coração, aqui, no meio do caminho, entre o barro e o mato. Jogue aqui a alegria. Jogue a alma e os abraços e os beijos e a cama de casal. É o jeito, é o jeito. E agora levante e olhe esta manhã tão magra e tão azul. E desça até a cozinha, enfie a comida dentro da boca e depois enfie a comida na boca dos meninos, e depois na boca do velho, e depois na das vacas e dos bezerros, na boca da porca, das galinhas e da cadela. É o jeito, é o jeito. Até que se esqueça de tudo, de tanta força bruta."
"Eu olho tudo; os caminhos e as árvores, o céu e o sol, as manhãs e as noites, as pedras e as urtigas, as bostas de vaca e os cumes, e as rochas e as fumaças ao longe e as trilhas de javali... tudo, e vou compondo rimas. Trago a poesia no sangue, eu. E conservo todos os poemas dentro da memória como num gaveteiro bem-arrumado. Sou uma jarra cheia d'água. De água simples como a dos riachos e das fontes. Inclino-me e derramo um jorro de versos. E nunca ponho no papel. Para não matá-los. Porque o papel é água doce do rio que se perde no mar. É o lugar onde fracassam todas as coisas. A poesia tem que ser livre como um rouxinol. Como uma manhã. Como o ar suave do entardecer. Que vai para a França. Ou não. Ou aonde quiser. E também porque não tenho papel nem lápis."