Miguel Freire 21/07/2022
Sem magia, sem Rei Artur, sem Camelot, sem espada na bigorna... mas mesmo assim perfeito!
As Crônicas de Artur é uma trilogia de livros escrita por Bernard Cornwell e publicada entre 1995 e 1997 e, mesmo que eu tenha lido só dois volumes da trilogia "A Busca do Graal" além dessas Crônicas, posso dizer sem nem pestanejar que é a melhor obra que o Cornwell já escreveu. Instigante, muito bem planejada, violentamente maravilhosa, te prende da primeira à última página com uma narrativa deliciosa.
Em primeiro lugar, deve-se notar que muitos fatores bastante familiares àqueles que já leram algo sobre o Rei Artur (o que é o meu caso) não estão presentes no livro. Isso se deve, talvez, pelo rigor histórico, já familiar entre os leitores de Bernard, que ele sempre insiste em seguir, mesmo que esta seja uma história sobre um personagem muito provavelmente ficcional e que se passa no período mais obscuro da história da Britânia. Porém, é magistral a forma como ele consegue pegar vários fatos e boatos históricos soltos e uni-los de forma coerente. Artur nunca se torna rei, não há magia, o Lancelot é um covarde da mais baixa categoria, a Távola Redonda é um fracasso e não há nenhuma espada que precisa ser tirada de uma pedra. Mas, mesmo sem esses elementos (a primeira vista essenciais) a história consegue ser tão ou até mais fantástica do que se eles estivessem presentes. Primeiro por causa do fio narrativo em si, com várias histórias soltas que culminam num clímax, muitas reviravoltas, mistérios a serem resolvidos e em segundo lugar por causa da habilidade única de descrição de batalhas que o escritor possui. Este dom que ele tem é tão incrível que te faz realmente se sentir no campo sangrento, com todo o seu desespero e toda a sua glória.
Como eu já disse, não há magia - pelo menos não explícita e sem alguma explicação racional. Isso mostra o profundo humanismo de Cornwell, a profunda confiança que ele possui única e exclusivamente nos homens. O livro inteiro fala do dilema de como os Deuses Britânicos abandonaram a humanidade a sua própria sorte e o próprio Artur é um pagão que perdeu a fé neles, que acha que a ordem e a paz só podem vir dos próprios homens a partir da bondade mútua e de leis justas e sábias. Os Deuses deixaram os homens e agora o homem é Deus e senhor de si mesmo. Os grandes vilões dos livros são justamente os fanáticos, cristãos e pagãos que depositam uma fé cega e louca na religião e fazem de tudo por ela.
Fiquei preocupado com esse humanismo, porque ele pode servir de porta para personagens pervertidos e sem nenhum senso de honra e heroísmo, como acontece no "Andarilho". Mas, pelo contrário, o que dá emoção a história é justamente a lealdade, a honra, a glória, a amizade e a alegria selvagem que advém dos guerreiros em uma batalha. É um livro sobre guerras; mas guerras justas que fazem muitos heróis e moldam a virtude de muitos homens. É também um livro sobre família, sobre paternidade e amor verdadeiro. A impressão que me dá é que o Cornwell conseguiu pegar os grandes temas cantados pelos bardos na antiguidade e trazê-los para o nosso mundo moderno.