Mar 06/11/2021
Nada nos move mais do que o amor
E não o romântico, apenas. Ao longo de sua narrativa, Mohamed mostra amor à terra, família, deus(es), pessoas, nós mesmes. Não importa o ódio e o infortúnio que ocorram, Jama, o protagonista, encontra lugar em seu âmago para amar algo mais, e continua. Por sobretudo, amar a vida, e saber que merece vivê-la.
Menino Mamba-Negra é a história de Jama, em sua peregrinação movida pela promessa de uma vida melhor desde Áden, no Yemen, até Londres. Solidificada entre os laços de Jama com seu clã e seu país, a violência branca e a segunda guerra, a narrativa progride tratando com nuance dos mais diversos temas. Além de nos contar a história de um homem real, o pai da escritora que de fato fez a jornada, e muitas outras; Mohamed nos conta de um Jama fictício, um porta-voz para a história de seu país e seus ancestrais. Jama é a infância roubada, a violência, o ódio, a esperança e o amor em uma única pessoa, e sua viagem é um relato sem rodeios sobre suas experiências com o mundo.
Mohamed não esconde a crueldade da qual somos capazes umes com outres, mas tampouco os viezes dessa crueldade - há o ódio mais óbvio, tal o des branques contra negres, nazistas contra judies. Mas há outros, como dos clãs somalis, pessoas da mesma cor e mesma terra que ainda assim possuem hierarquias para aproveitar-se de outras. Há o sexismo tão cruel para com as mulheres quanto limitante aos homems, a homofobia, a xenofobia, o relativismo religioso, e muito mais. O privilégio vem e vai na história, alguns muito piores que outros, mas nenhum oculto. Todos são parte das lições que Jama compreende e que todes nós deveríamos também compreender. Há sutilezas, áreas cinzas em tudo, e o jeito mais próspero de navegá-las é com gentileza e esperança.
Nem por isso, porém, Mohamed perdoa ou permite os horrores do racismo e da colonização. À seus perpetradories são reservados os adjetivos mais degradantes e a verdade nua sobre sua falta de humanidade. A sujeira na história de Jama é branca.
Mohamed nos conta uma história além de violências e contexto histórico, porém. A África de Jama também é uma personagem, um plano de fundo vivo e constante para suas andanças. Jama tira força e conexão da terra, compreendendo muito ao seu redor pela natureza e guiado pelas estrelas que sua mãe disse que lhe trariam boa fortuna, pelos mitos e superstições que povoam seus passos e não lhe deixam sozinho. Além disso, há seu totem, a mamba-negra, serpente que o abençoou quando ainda não nascido e o encontra novamente em forma de tatuagem no braço de um marinheiro galês. Jama faz sua própria tatuagem, marcando seu totem em sua pele em uma descrição visceral, quase santificada, da troca de seu sangue traumatizado por um renovado, esperançoso - amadurecido e fortalecido pela vida que levou até ali.
As suas dificuldades não são romantizadas ou dadas como necessárias; são absurdos impostos sobre si por poderes injustos. O único fator importante é sua presença de espírito para vencê-los.
Na realidade, a capacidade de nuance e possíveis abordagens de Mohamed são tantas que seria possível citar muito mais. Há passagens em que uma simples frase carrega pensamentos muito maiores, como uma espécie de poesia, onde um jogo curto de palavras traz uma história. Escreve com maestria também a imaginação de Jama no início, suas interpretações do mundo infantis, mas não inocentes.
Dada sua capacidade nesse âmbito, é um pouco decepcionante o ritmo da prosa, que de lenta e focada em momentos íntimos e formativos, fornecendo diálogos inteiros e parágrafos de sentimentos, à partir da metade do livro começa a acelerar progressivamente até seu final, quase apressada a se encerrar. Em algumas passagens, o ritmo frenético funciona, como a guerra, mas outras, tal a exploração de Londres, é alienante e desorienta. Mohamed faz grandes saltos temporais, comendo semanas, meses e até anos da vida de Jama, como se de repente alguns não valessem tanto descrições quanto outros. E em menor escala, muitas vezes quebra cenas de supetão, saltando para a próxima passagem de forma que também desorienta, parecendo começar mais cenas do que termina, muitas vezes perdendo el leitore em suas longas descrições sensoriais.
Apesar desse fator, Menino Mamba-Negra nos prende com a sinceridade letal de suas páginas, sua esperança desavergonhada, amor pela vida e educação histórico-geográfica, tornando-se uma leitura tão educativa quanto emocional, um relato que temos sorte que seja compartilhado.
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Queria até falar mais, mas seria uma coisa com mais spoilers e análises mais diretas de passagens do livro etc então ficam os comentários no meu perfil e na minha cabeça ??