coracinho 31/12/2023
A arte perdida de sentir sem analisar (e a ironia de escrever uma resenha sobre isso)
(Observação: Não sei se considero esse um livro passível de ter spoilers, pois não é bem um livro em que a linearidade importa. Mas se mesmo assim não quiser arriscar, melhor pular esse texto.)
Em algum ponto de "Frio o bastante para nevar", a narradora nos conduz a um lago. É um ponto ilusoriamente ínfimo da história.
Ok, talvez a escolha da palavra "ponto" não seja acertada. Para a geometria euclidiana, um ponto é aquilo que é incapaz de se dividir. Por outro lado, cada cena de "Frio o bastante para nevar" é mais como uma folha de papel, uma extensão branca que pode ser cortada e recortada em uma multiplicidade de formas.
Voltemos ao lago.
Em uma viagem que faz com o namorado, a protagonista (cujo nome nunca é mencionado) visita um grande lago, o preenchimento aquoso de uma cavidade gerada por um meteoro. A protagonista ouve dizer que é um lago cuja profundidade é desconhecida, e isso se torna uma verdadeira fixação.
"Pensei novamente em como ninguém sabia o quão profundo o lago realmente era, e como eu não conseguia conter esse pensamento."
"Frio o bastante para nevar" é um livro curto, de 96 páginas. O que não significa que seja um livro leve. Quer dizer, sim e não. A sensação distinta que tive lendo esse livro é de leveza e simplicidade. Mas é uma leveza de linho, de trama intrincada habilmente escondida — cuja beleza está tanto na suavidade do tecido como no desenho oculto dos seus fios.
Falando em tecido, este livro não é produto de fábrica. Remete a algo muito anterior, a uma tecelagem artesanal e repetitiva. Repetição indutora de transes, trabalho minucioso e que desfia o nosso pensamento. Flutuamos pela consciência da protagonista, por ela somos conduzidos quase que passivamente, atravessando tempo e espaço como se isso nada fosse. Aqui e ali aparecem figuras imagéticas recorrentes, balizas que nos orientam pelo trajeto.
Chuva. Névoa. Leitoso. Montanha.
A metáfora do tecido não é gratuita. É algo que a própria autora traz em algumas páginas. Uma das primeiras cenas do livro descreve um momento em que a protagonista é absorvida por uma amostra de tecidos expostos em uma vitrine.
"Olhar para a translucidez dos tingimentos sobrepostos me deu a impressão de olhar para cima através de um dossel de folhas. Eles me lembravam das estações do ano e, em seus fios naturais e aparentes, me faziam pensar em algo amável e honesto, que havia sido esquecido, algo que apenas podíamos olhar, não mais viver."
Essa não é a única passagem do livro em que somos levados a examinar um objeto ou uma peça de arte exposto em um museu. A cabo, somos nós os que contemplam os contempladores. E, de fato, a experiência dessa leitura é a de quem se põe diante de uma pintura, alternando entre ver a paisagem e se aproximar para distinguir as pinceladas.
A autora do livro, a australiana Jessica Au, é descrita como uma escritora lenta. De fato, ela gestou esse livro por 11 anos após o seu primeiro, Cargo. Essa lentidão e cuidado é algo notável e que nos convida a observar antes de analisar. Sentir antes de compreender. Uma habilidade rara hoje em dia, nesses tempos em que tentamos trazer luz a toda e qualquer sombra. Talvez uma capacidade perdida.
(Vejo a desrazão de tudo isso enquanto folheio as páginas do meu exemplar de "Frio o bastante para nevar", gravadas com caneta e marca-texto. Suspiro. Continuo — pois não sei ser de outro jeito.)
Ao final do livro, a protagonista nos conta que sempre que perguntava à sua mãe o que ela gostaria de ver em uma viagem ao Japão, ela respondia dizendo que ficaria feliz com qualquer coisa. Uma única vez, perguntou se no inverno fazia frio o suficiente para nevar, pois nunca havia visto neve.
Paro de escrever e me dou conta de que até agora não escrevi sobre o que é o livro. O cursor pisca na tela, aguardando meu próximo movimento. No fim das contas, decido que não escreverei sobre isso. Se um dos personagens de "A mais recôndita memória dos homens" (Mohamed Mbougar Sarr) estiver correto, isso é algo bom:
"Nunca mais caia na armadilha de querer dizer do que fala um livro que você acha grande. (...) Um grande livro não tem assunto e não fala de nada, procura apenas dizer ou descobrir alguma coisa, mas esse apenas já é tudo, assim como essa coisa já é tudo."
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