Coisas de Mineira 19/07/2022
A ESTRADA LINCOLN: UM APANHADO DE PERSONAGENS FABULOSOS
A Estrada Lincoln, o terceiro romance do autor Amor Towles, veio na caixa de número 45 do Clube Intrínsecos. É um romance de formação que vem trazer as aventuras de uma road trip depois de tanto tempo enclausurados pela pandemia.
Tudo começa em junho de 1954, e dura exatamente dez dias. Emmett Watson se envolveu com problemas no passado, e por isso estava em um reformatório no Kansas. Por conta da morte de seu pai, foi libertado alguns meses antes do fim de sua pena, já que agora é o único responsável por Billy, o irmão de 8 anos. Billy estava sob os cuidados de Sally, que vive em uma fazenda vizinha.
Um funcionário leva Emmett de volta para casa, no Nebraska, sem perceber que tinha mais dois ocupantes escondidos no carro: Duchess e Woolly, dois companheiros do reformatório.
“A vida num reformatório agrícola é programada para embotar o espírito.”
Bom, tudo que Emmett e Billy desejavam era recomeçar a vida na Califórnia. O plano era simples: Emmett tem certa experiência com construção civil, e buscava uma cidade que estivesse em rápido crescimento, pois pretendia reformar e vender casas. A Califórnia parecia promissora segundo a enciclopédia, ao mesmo tempo que parece ser o destino da mãe dos garotos, que deixou a família e enviava cartões postais ao longo da Estrada Lincoln.
Quando os planos vão por água abaixo
Entretanto, os novos amigos têm outros planos: depois de descobrirem que Emmett tem um carro – único bem que não foi tomado pelo banco, em razão das dívidas do pai, Duchess e Woolly querem ir até Nova York, em busca de uma herança que o avô de Woolly aparentemente deixou para o neto.
Acontece que Emmett conhece bem seus ex-colegas, e não está muito entusiasmado com os planos, mas se vê sem alternativas quando Duchess foge com o velho Studebaker – e com todo o dinheiro economizado, para Nova York.
Ao mesmo tempo preocupado com Billy, Emmett vai atrás dos amigos e os quatro se envolvem em aventuras, confusões, reencontros com o passado, num caminho de amadurecimento e despedidas. Acima de tudo, é uma jornada sobre garotos se tornando homens.
“Porque é só quando vê que está mesmo abandonado, que você se conforma com o fato de que tudo que acontecer em seguida está em suas mãos, não depende de mais ninguém.”
Um primeiro encontro promissor
Primeira vez que leio um livro do autor, e já me tornei fã. O livro anterior de Towles, Um Cavalheiro em Moscou, foi publicado em 2018 no Brasil, também pela Intrínseca. Ficou dois anos na lista de best-sellers do New York Times, o que aumentou as expectativas com relação a A Estrada Lincoln. É um calhamaço, que passou a falsa impressão de ser um livro sobre a road trip, quando temos na verdade muitas outras estórias sendo contadas. Towles é um grande contador de estórias e isso se reflete nos personagens, que são falhos, persistentes, super carismáticos.
A narrativa traz diversas perspectivas, e é impressionante como o autor consegue mudar o tom de cada um deles. Os capítulos são envolventes, e os acontecimentos podem ser sequenciais, ou um ponto de vista sobre o mesmo evento e/ou momento da trama.
Além de Emmett, Billy, Duchess e Wolly, A Estrada Lincoln apresenta muitos outros personagens. São escritores, atores, donas de casa, vendedores ambulantes, prostitutas, palhaços, ex soldado e até um pastor, numa das passagens mais sombrias e indigestas do livro. Ainda assim, todos eles trazem suas estórias, que vão formando um mosaico de fundo. Cada um desses personagens pode parecer secundário, mas é o protagonista de sua própria aventura.
Protagonistas com muitas camadas
Ainda assim, é nos garotos que vale mirar. O mais complexo para mim foi Duchess, que começa parecendo meio irresponsável, mas que vai se transformando – não necessariamente de uma forma boa, já que tem um código de moral do tipo olho por olho, literalmente. Eu o achei, em alguns momentos, meio sociopata, mesmo que, depois de descobrir mais do seu passado, fosse possível entendê-lo. Ele tem muitas camadas, e uma ‘ética’ própria, se via como herói, mas agia claramente como vilão.
Emmett, por outro lado, personifica o guardião estoico, ainda que sua raiva incontrolável tenha tido, como consequência, sua detenção no reformatório. Billy é o único que consegue refrear essa raiva, e Emmett sabe disso. Eu gosto dele, não fugiu a obrigação de cuidar do irmão, que tinha a ideia sonhadora de encontrar a mãe.
O jovem Billy é a pedra preciosa desse livro. Carrega uma mochila com lanterna, bússola, um mapa que ele quase sabe de cor, junto aos cartões postais da mãe, além de um livro com histórias de heróis – tanto reais quanto fictícios, que contribuem em alguns momentos.
“- Tenho certeza absoluta de que estamos na nossa aventura, Emmett, mas não vou poder começar a escrever até saber qual é o meio dela.”
Um final cheio de reviravoltas
Quanto a Woolly, eu queria compreender mais esse garoto. É ingênuo, doce, dependente de remédios – que são administrados por Duchess, para que Woolly não exagere, vem de uma família rica que cansou de trocar o menino esquisito de escola. Ele só quer o dinheiro que o avô deixou, em uma propriedade de férias nas Adirondacks.
O que nos move pelos capítulos é, além de todas as estórias dos personagens, os motivos que levaram esses garotos a prisão. E vamos nos surpreendendo, capítulo a capítulo. Vemos cada um dos personagens em suas próprias encruzilhadas. Mas, ao final…
Até quase as últimas 50 páginas, temos uma homenagem a estórias bem contadas. É quando chegamos aos momentos decisivos, alguns deles muito chocantes. E com um final aberto a interpretações.
“Tendo percorrido mil e quinhentas milhas na direção errada, prestes a viajar mais três mil, Emmett acreditava que o poder dentro dele era de natureza nova, que ninguém além dele poderia saber do que ele era capaz, e ele apenas começou a conhecê-lo por si mesmo.”
A Estrada Lincoln é um apanhado de personagens fabulosos – homens, mulheres, jovens, pretos, brancos, ricos, pobres, seguindo em frente em meio a truques de mágica e acerto de contas. Com quase 600 páginas, é dinâmico, ainda que sombras pairem sobre os capítulos finais. Foram 10 dias repletos de possibilidades, grandiosas e definitivas.
Por: Maisa Carvalho
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